A poética de R. Roldan-Roldan por Ricardo Carranza
R. Roldan-Roldan, 1998. Foto: Lygia Nery
RICARDO CARRANZA
Os poetas fundam o que permanece, disse Holderlin; Peter Sloterdijk escreveu o ensaio Teopoesia sobre escritos e ritos religiosos. Agambem, pensando a definição do verso, o opõe à prosa através da presença do enjambement ou versura; portanto, Poesia vem a ser o discurso no qual um limite métrico se opõe a um limite sintático; a Prosa, por sua vez, é o discurso no qual o enjambement é inviável. Munido com tais parâmetros, afirmamos a Poesia como a Arte de atribuir significados ao mundo e assim iluminá-lo.
Diante da obra – Úberes do Infinito de R. Roldan Roldan, temos a sensação de nos confrontarmos com um mundo iluminado por uma voz ensimesmada, como se a empatia dirigida a um leitor ideal, ou ainda, um interlocutor possível sem a formalidade da presença – ficasse a cargo de um tiro ao alvo no escuro, o que nos sugere um Eu lírico incapaz de advogar em causa própria; lembremo-nos então de Nietzsche e o problema ético de se julgar a vida sem as boas práticas da isenção; além disso há a recusa implícita de se escrever Poesia voltada para consumo de mercado.
Desde o título – Úberes do Infinito, que possui afinidade com o movimento surrealista enquanto método, pela associação do natural ao abstrato ou do animado ao inanimado – de nossa parte o associamos, livremente, ao mito da fundação de Roma, representado pela Loba que amamenta os gêmeos Romolo e Remo; e assim o autor nos desafia a empreender a tarefa de interpretar poemas cuja linguagem direta e clara também é truncada ou aparentemente desarticulada pelo uso cortante da elipse, o que faz de nós leitores, em alguma medida, também Poetas.
Pensemos então na elipse como recurso enxadrista, o cavalo avança sobre as peças do adversário com a partida e a chegada pré-determinadas e o salto necessariamente subentendido. Em Poesia o movimento estará subentendido como parênteses implícitos entre dois versos. O vazio conduzido pelo salto gera linguagem concisa destinada ao leitor atento; e como exemplo notável economia de meios, citamos O retiro dos cervos de Wang Wei, incluso na Antologia da Poesia Clássica Chinesa, Unesp 2013.
vazia a montanha ninguém se vê
entanto rumores vozes se ouvem
torna a luz poente até o bosque denso
ainda ilumina o musgo verde sobre
Em contrapartida, o método de Roldan.
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fez ferver o sangue
hoje coca-cola
resta apenas o
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A extensão nos limita ao Haiku, e descreve de forma extra sintética e crítica o evento histórico destinado a desestabilizar o mundo; pois se a paixão revolucionária explodiu para, aos poucos, ser assimilada pelo capitalismo, deixou-nos, enfim, apenas um vaidoso Kama Sutra classe média.
Como dito anteriormente, Roldan, em nenhum momento, deseja conquistar a nossa adesão, ele não tem essa pretensão, não que nos convencer de nada; é evidente a reflexão condutora de uma posição, a nosso ver, tão irônica quanto ácida, ao questionar um marco histórico nos seus resultados a longo prazo. Então é viável a tentativa de mudar o mundo? Quem suportaria a eternidade da revolução permanente? Sem o terremoto como as camadas em subsolo se ajustariam? Roldan, o lacônico, parece sugerir... “Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios.” (Faulkner, 1929). Ou que a Poesia quando se desespera significa a necessidade do que falta...
O micro poema, sobre o qual nos debruçamos, selecionado pelo autor à quarta capa, contempla o grande evento histórico de Maio de 1968; outros, como a trilogia das cores nos fala de correnteza cultural Wen Chang e Paideia, e os cantos à Terra, Chuva, Sol e Vento, nos colocam diante dos grandes eventos da natureza, em oposição aos monumentos históricos, significada em tom devocional comovente.
E não é tudo...
Onde quer que estejam, pássaro apegado à folhagem úmida da árvore, centelha no coração do aço, aos que deixam a terra devastada, a obra edifica a partir de escombros.
Poemas Inacabados de R. Roldan-Roldan
R. ROLDAN-ROLDAN
Autor de 42 livros publicados: romances, novelas, contos, teatro, poesia, epistolar, reflexões. Três desses livros foram premiados na Itália. Dessas 42 obras, duas são em francês, uma em espanhol, uma em inglês e o restante em português. Como curiosidade, vale a pena ressaltar que ele destruiu seus primeiros cinco livros depois de publicados. Nascido na Espanha. Criado no Marrocos. Formação francesa. Cidadão brasileiro. Infância conturbada. Separado dos pais. O pai num país. A mãe, num outro. E ele num terceiro país. Perseguição política. Extrema pobreza.
Dez anos presos numa cidade-estado pelo fato de a família ser apátrida. Gerente numa multinacional, larga tudo para se dedicar à literatura em tempo integral. Passa fome, literalmente falando. Mas liberto e feliz, compulsivo e obsessivo, mergulha de corpo e alma na criação literária. Apaixonado pela arte em geral, seus temas e obsessões vão da identidade, ao silêncio, passando pelo exílio, o sexo, a liberdade, a política, o cinema, a música e a metalinguagem. Costuma dizer que um poema nunca está terminado, daí o detalhe de seus poemas acabarem como “Inacabados”. Sobre sua voracidade literária, alega que é um escritor da alma aos testículos.
K57 Nas áridas planícies...
Nas áridas planícies
Da Ásia Central
Procurei no sexo o que o Amor me negou
Das gretas da terra ferida
Brotavam tufos de ervas secas
Vãs tentativas da solitude
De contornar a solidão
Silvava o vento da desolação
E os ossos rangiam nos ninhos da alma
E caminhei errante poeta claudicante
Com um sonho roto na mochila
Ter uma família normal
Com o amor da esposa e dos três filhos
Um pouco como o poeta visionário do Áden
Antes de partir
[inacabado 19-03-24]
K58 Exilado na infância...
Exilado na infância
De Perrault e dos irmãos Grimm
Percorri os ergues da adolescência
E chegando a uma hamada
Numa caverna me instalei
Onde como um jovem Jerônimo
Contemplei dançar as esculturas do Silêncio
[inacabado 22-03-24]
K59 Sob céu nublado...
Sob céu nublado
Coroado pelo círculo dos corvos
A Tristeza vestida de folhas de outono
Enveredava pela estrada de terra
E ia desfalecer
Quando foi sacudida por intensa luz
Iluminando o Falo Imperial da posteridade
A sua frente erguendo-se potente
A instar-lhe prosseguir a vida com a Alegria
Assim a Tristeza se levantou
Sorrindo
Como Cabíria no final do filme de Fellini
[inacabado 24-03-24
R.Roldan-Roldan.
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Editor responsável e autor do ensaio:
Como citar:
ROLDAN-ROLDAN, R. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, v.01, n.26, e218, jan./ jun. 2024. Disponível em: Poemas inacabados de R. Roldan-Roldan (arquitetonica.com)
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