A experiência imagética na arquitetura “Raio que o parta”

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura Imprimir Email

LAURA CAROLINE DE CARVALHO DA COSTA

CYBELLE SALVADOR MIRANDA

Resumo:

“Raio que o parta” (RPQ), em arquitetura, é um termo associado à manifestação estética concebida por engenheiros, mestres-de-obras e moradores que recriaram o modernismo nas residências de classe média e popular no Pará, diferenciando-se das demais assimilações do moderno no Brasil pelo emprego de mosaicos com desenhos de setas e raios, executados com cacos de azulejos nas platibandas. Face à perspectiva comumente difundida de que se tratou de um modernismo de fachada, posto que alguns exemplares são constituídos de reformas a partir de pré-existências das arquiteturas de traços colonial e eclético, identificamos construções “de raiz” erguidas entre os anos 50 e 60 do século XX e que trazem os elementos do RQP para o espaço interno, no intuito de modernizar a casa na sua ambiência interior.

Ao constatar, nos últimos anos, o apagamento crescente dos elementos RQP nas fachadas da capital paraense, percebe-se também uma valorização de seus padrões decorativos em outros segmentos da cultura material como o design e a moda. Assim, o presente artigo discute o RQP enquanto experiência imagética do moderno através da arquitetura não-erudita, analisando três casas edificadas “de raiz” situadas nas cidades de Belém e Abaetetuba, ambas no Estado do Pará.

 Introdução

A assimilação da gramática moderna na arquitetura paraense ganhou o nome de “Raio que o parta” (RQP), tornando explícita a visão pejorativa entre arquitetos do então recém-criado Curso de Arquitetura na Universidade Federal do Pará, em 1964. Sem assessoria ou projeto de tais profissionais, as casas assumiam ares modernos pelas mãos e mentes dos proprietários, engenheiros, mestres-de-obras ou desenhistas. Multiplicaram-se pelos bairros de Belém, desde os mais antigos e valorizados aos de classe popular, além dos exemplares encontrados em municípios no interior do estado do Pará, alguns consideravelmente afastados da capital (CARVALHO; MIRANDA, 2009) (COSTA, 2019).

Embora inserido num contexto em que tal tendência foi empregada em outras regiões do país, o RQP se diferencia das demais assimilações pela forma singular dos elementos que emprega em suas fachadas, como platibandas recortadas em forma de raio e decoradas com painéis de cacos de azulejo formando setas, bumerangues e símbolos maçônicos, além da apropriação de outras características da arquitetura moderna, como as colunas em V, brises inclinados e blocos vazados coloridos.

Face à perspectiva difundida de que se tratou de um modernismo de fachada, posto que alguns exemplares são constituídos de reformas a partir de pré-existências do colonial e eclético, identificamos construções erguidas entre os anos 50 e 60 do século XX e que trazem os elementos do RQP para o espaço interno, no intuito de modernizar a casa não apenas no lado de fora: a esses exemplares chamamos de “casa raiz”, porque suas características RQP foram incorporadas desde a idealização da obra, ao contrário dos casos em que a residência pré-existente foi reformada para receber os painéis de mosaicos). Isso demonstra que os proprietários não queriam somente mostrar a modernidade, mas também integrá-la ao espaço interno. Entretanto, essa integração se revela de forma imagética, o que pode ser observado pela reprodução dos elementos da fachada e pelas poucas modificações no partido arquitetônico das construções.

Esse desejo de viver o novo repete-se 50 anos depois, quando usuários e proprietários começam a retirar os cacos coloridos para substituí-los por revestimentos contemporâneos que imitam mosaicos. Face a esse comportamento, propomos a seguinte questão: será o fim do RQP? Ou apenas a renovação da experiência imagética do moderno?

Assimilação da Arquitetura Moderna

No Brasil, observamos como a cultura influencia nas apropriações de linguagens estéticas. Para os norte-americanos, modernismo e vernacular são coisas incompatíveis, mas não para os brasileiros, que buscavam o moderno como maneira de ser original e de participar do progresso que a proposta representava. Essa apropriação significou um processo complexo de transculturação: construções que usam elementos do modernismo selecionando e excluindo aspectos do cânone moderno combinados com os requisitos locais (LARA, 2018). O caso brasileiro se torna mais peculiar em termos de associação de dicotomias: de um lado, modernismo, cultura erudita, edificações institucionais e comerciais; de outro, estilos tradicionais, cultura popular e moradias.

Falar sobre o RQP como arquitetura não é uma tarefa inédita, somando trabalhos de autores nas áreas de arquitetura e design há pelo menos 29 anos. Esse esforço é resultante da relevância que as assimilações da arquitetura moderna possuem no contexto brasileiro, posto que em cada região do país é possível encontrar construções que reúnem essas características. No entanto, a maneira particular como essa assimilação se manifesta no Pará e o valor atribuído pelos usuários que optam por eliminar suas características merece um estudo aprofundado.

Loureiro afirma que, na Amazônia, a função estética predomina sobre as demais, visto que seu ambiente propicia uma atitude de devaneio: sem pretender ser obra de arte, comunica uma mensagem que é mergulhada pela função estética. Ao afirmar que “o imaginário amazônico tem vocação alegórica. Busca a essência por meio da aparência” (LOUREIRO, 2015, p. 94), compreende-se duas coisas: que temos a capacidade de reunir diversos conceitos em algumas imagens (origem da criação e fenômenos naturais transformados em mitos), e uma atitude que traduz as expectativas culturais e estéticas em fachadas.

O autor destaca a experiência de encontrar nas cidades paraenses construções da arquitetura não-erudita, nas quais:

A relação entre o homem e a natureza se faz de modo familiar e, ao mesmo tempo, perpassada de estranhamento (...), processo em que atuam os que estranham (aqueles que percebem algo de novo) [...] e o mundo estranho (isto é, a realidade percebida ambiguamente, como permanente novidade, que revela pela forma as cintilações de seu conteúdo) [...]. Uma relação de permanente descoberta diante das coisas (LOUREIRO, 2015, p. 99)

Ainda falando sobre construções, cita como as fachadas residenciais ou comerciais se tornam suportes de cores, como “espaços pictóricos a serem incansavelmente preenchidos”, traduzindo o “horror ao vazio visual”. “Longe de um estilo simplesmente decorativo, trata-se da configuração de uma certa solenidade visual, que confere a tudo uma vaga intemporalidade” (LOUREIRO, 2015, p. 121). Neste caso, há semelhança com a arquitetura RQP, que assimilou por meio do mosaico entre formas e cores a experiência moderna brasileira e transcendeu o moderno, por estar ligado à essência da cultura local.

As pesquisas constatam que o RQP foi produto da vontade de famílias de classe média e popular no Pará entre os anos 50 e 60, período em que a região ainda não possuía ensino superior em Arquitetura e Urbanismo, portanto, os atos de projetar e construir ficavam sob a responsabilidade de mestres de obras, engenheiros e muito frequentemente dos próprios moradores. Dessa forma, pretendemos discutir o emprego de elementos da arquitetura moderna em espaços construídos sem acompanhamento de arquiteto e urbanista no Estado do Pará. Para tanto, analisamos fachada e espaço interno de três “casas de raiz” RQP – construídas segundo o estilo moderno e não reformadas a partir de pré-existências – adotando o método etnográfico, que procurou compreender a relação dos usuários com o ambiente construído por meio da observação em campo, com entrevistas semiestruturadas e levantamento fotográfico, nas cidades de Belém e Abaetetuba. No primeiro exemplo, o levantamento arquitetônico do imóvel foi contemplado em pesquisa que tomou o RQP manifestado na residência como referência para compor o projeto de Centro de Educação Patrimonial no Centro Histórico de Belém como Trabalho Final de Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (LOPES, 2019). Já no segundo e terceiro casos não nos foi permitido tomar medidas, e para a compreensão da organização espacial interna, esboçamos esquemas em planta baixa sem escala.

Estudo de Caso 1: Casa nº 561, em Belém

Situado na Rua Doutor Malcher, o primeiro exemplar a ser abordado pertence ao bairro onde as primeiras ruas e construções foram criadas em Belém: a Cidade Velha.

A casa foi construída por volta dos anos 40, segundo entrevista com o filho do primeiro proprietário, este já falecido. A classificação “casa de raiz” é justificada pelo relato do morador que afirmou que o painel de azulejos na fachada foi idealizado pelo pai na época de sua construção.

 Figura 1 – Fachada da casa nº 561, na Cidade Velha, com detalhe do painel de azulejos. Fonte: Autoras, 2013Figura 1 – Fachada da casa nº 561, na Cidade Velha, com detalhe do painel de azulejos. Fonte: Autoras, 2013

 A cor da fachada é bege, com azulejos 15 x 15 cm no mesmo tom aplicados no pavimento térreo. Apesar de não possuir recuos frontais e laterais - a casa preenche todo o lote, com exceção do quintal que ocupa a área dos fundos -, a volumetria escalonada possui pátio de entrada no térreo e varanda no primeiro pavimento, que afastam os ambientes da rua, proporcionando-lhes privacidade e sombreamento. As finas colunas metálicas na varanda e uma marquise de concreto diferenciam-se do perfil das demais casas na mesma rua que apresentam características do ecletismo e do neocolonial. O telhado invertido para os fundos do lote cria uma empena frontal, na qual é situado o painel de azulejos de fundo amarelo e magenta que destaca uma pequena seta preta. As esquadrias são de madeira e vidro, com venezianas na parte inferior para ventilação.

O programa arquitetônico indica uma distribuição linear. No térreo, o pátio frontal dá acesso ao corredor principal e à sala de estar, esta última integrada à sala de jantar por um vão sustentado por pilastras. Esta sala tem acesso a uma pequena área de ventilação que também oferece luz natural para a escada e o quarto. A espacialidade que garante a privacidade dos cômodos ainda guarda resquícios do programa tradicional brasileiro, inserindo a cozinha na parte posterior da casa, próximo ao banheiro. O primeiro pavimento é destinado à área íntima, possuindo três quartos e um banheiro, este também nos fundos. Aqui, o tradicional e o moderno se encontram: embora o projeto não tenha criado suítes, ambos os banheiros possuem banheiras, equipamento comum em residências cujos moradores possuem um estilo de vida abastado.

Figura 2 – Planta baixa do térreo e primeiro pavimento da casa nº 561. Fonte: LOPES, 2019Figura 2 – Planta baixa do térreo e primeiro pavimento da casa nº 561. Fonte: LOPES, 2019

Dos móveis às luminárias de teto, percebe-se ao entrar na casa a preocupação em se adequar ao estilo do morar moderno dos anos 50 e 60; vasos marajoaras, flores artificiais vibrantes, aves de cerâmica e imagens de santos são a decoração do aparador da sala de jantar e da estante da sala de estar. A cozinha contrasta a “vibrância” dos azulejos coloridos com a ornamentação tradicional dos armários de madeira.

O acesso ao segundo pavimento é feito por uma escada em granilite e azulejos azuis nas paredes, e no patamar estão posicionadas duas colunas que lembram a ordem coríntia grega, apoiando um vaso com flores. Nos quartos, relógios antigos e arranjos de flores artificiais nas paredes, e no piso composições de ladrilhos e peças do tipo São Caetano. Quando questionado sobre sua opinião acerca da casa, o morador entrevistado respondeu positivamente, afirmando que não pretendia modificá-la por considerar um exemplar do patrimônio histórico, dada sua localização no primeiro bairro da cidade.

Figura 3 – Detalhes no interior da residência nº 561. Fonte: Autoras, 2013Figura 3 – Detalhes no interior da residência nº 561. Fonte: Autoras, 2013

Estudo de Caso 2: A casa nº 257, em Belém

Localizada na rua Frederico Scheneippe, a segunda casa pertence ao bairro do Telégrafo, de estratificação popular. Na época em que a pesquisa foi realizada, o imóvel encontrava-se desocupado para venda, mas através de contato telefônico foi possível agendar uma visita com o atual proprietário, filho dos primeiros moradores que a construíram com o acompanhamento do engenheiro Otávio Pires na década de 50.

O proprietário afirma que a última reforma foi na década de 80, mas acreditamos que outra manutenção mais recente foi empregada, a julgar pelos revestimentos de piso em alguns dos ambientes e a pintura das paredes internas.

A fachada desta casa repete algumas das características do primeiro caso: dois pavimentos, telhado invertido e painel de azulejos aplicado na empena (aqui, o tom da casa é amarelo, e os desenhos RQP se compõem de polígonos de azulejos azuis, verdes, amarelos e pretos e uma estrela). Contudo, o alinhamento ao lote é marcado por um muro frontal, criando um pátio semicoberto e pavimentado. As esquadrias também são de madeira com venezianas. Alguns materiais que se diferenciam do primeiro caso são pequenos filetes cerâmicos nas cores marrom e amarelo e os cobogós esmaltados nas cores rosa, amarelo e lilás.

Figura 4 - Fachada da casa nº 257. Fonte: MODESTO et al., 2013Figura 4 - Fachada da casa nº 257. Fonte: MODESTO et al., 2013

A espacialidade deste imóvel divide as zonas social e íntima por pavimento, assim como no exemplo anterior. Entretanto, sua planta não é longitudinal e a circulação é situada no centro da casa, o que permite visibilidade entre os ambientes. Há duas portas de entrada, a destinada para os familiares (principal) e um acesso de serviço, que se comunicava com a escada e à cozinha. O térreo possui sala de estar, sala de jantar, saleta, cozinha, banheiro (estes dois situados aos fundos), área de serviço e edícula. No primeiro pavimento, três quartos e um banheiro, interligados por uma pequena circulação.

Figura 5 – Esquema em planta baixa do térreo e primeiro pavimento da residência nº 257. Fonte: Autoras, 2020Figura 5 – Esquema em planta baixa do térreo e primeiro pavimento da residência nº 257. Fonte: Autoras, 2020

Alguns elementos que remetem ao modernismo brasileiro ainda podem ser vistos no interior, como as colunas metálicas em V na sala de jantar e o corrimão da escada que dá acesso ao andar superior. Ao ser questionado se gostava da fachada, o entrevistado respondeu que sim, mas acrescentou: “é uma casa antiga que pode ser atualizada”, referindo-se à necessidade de construir mais banheiros para os quartos.

Figura 6 – Detalhes do interior da residência nº 257. Fonte: Autoras, 2014Figura 6 – Detalhes do interior da residência nº 257. Fonte: Autoras, 2014

 Estudo de Caso 3: a casa nº 1833, em Abaetetuba

O município de Abaetetuba, situado no baixo Tocantins, dista pouco mais de 120 km da capital paraense, e a antiguidade de sua formação é um dos fatores que permitiu o aparecimento do RQP em meados do século XX. Em 2020, foram identificadas 4 remanescentes dessa manifestação, além de fotografias que registram os mosaicos em construções que já foram modificadas. A casa nº 1833, situada na Rua Siqueira Mendes (bairro do Centro), pertence à família Figueiredo, que a adquiriu do senhor Aprígio Veloso nos anos 60, mas atualmente está desocupada. De acordo com o esposo da proprietária, o projeto ficou a cargo do engenheiro Camilo Nasser.

O imóvel está centralizado no lote, cercado por área verde e um muro baixo que delimita o terreno. O RQP surge no discreto “emolduramento” de mosaicos na laje da sacada e nas floreiras do pátio, mas o que chama atenção na fachada são as referências à arquitetura moderna: o painel de planos horizontais em concreto que veda a janela da sala de estar e sua forma curva lembram a volumetria do Edifício Copan, em São Paulo; as finas colunas metálicas que simulam a sustentação da sacada; as aberturas tubulares para ventilação localizadas no estar íntimo e os brises em plano inclinado que emolduram cada janela nas fachadas laterais.

Figura 7 – Fachada da casa nº 1281, em Abaetetuba. Fonte: Autoras, 2020Figura 7 – Fachada da casa nº 1281, em Abaetetuba. Fonte: Autoras, 2020

Figura 8 – Detalhes da fachada: painel em concreto, colunas metálicas e brises em plano inclinado. Fonte: Autoras, 2020Figura 8 – Detalhes da fachada: painel em concreto, colunas metálicas e brises em plano inclinado. Fonte: Autoras, 2020

A sensação de tempo congelado também é sentida ao adentrar este imóvel, pois, apesar de não estar ocupado pelos proprietários, os móveis e objetos são os mesmos de quando o patriarca da família era vivo, como forma de reverenciar sua memória. Notamos a diferença no projeto realizado por profissional de engenharia, em que o conhecimento técnico permitiu explorar outras soluções para planta e a fachada, embora identifiquemos semelhanças com os projetos anteriores, a exemplo do banheiro único compartilhado entre os quartos no pavimento superior e a cozinha separada da sala de estar e jantar, sendo estes dois interligados por uma grande janela interna. O revestimento do piso é um diálogo de transição entre o tradicional e o novo, alternando cerâmica São Caetano e granilite com tábuas corridas e tacos de acapu e pau amarelo. As esquadrias são todas em madeira, sendo algumas janelas combinadas com vidro incolor para conferir iluminação natural aos recintos.

Figura 9 – Esquema em planta baixa sem escala da residência nº 1833, fonte: autoras, 2020Figura 9 – Esquema em planta baixa sem escala da residência nº 1833, fonte: autoras, 2020

O projetista buscou separar a área social da íntima pela escada, que é foco visual ao adentrar a casa, não somente por estar quase no centro do andar térreo, mas porque os espelhos de cada degrau são revestidos com cacos de azulejos. Ao chegar ao último degrau, notamos que o mosaico do espelho forma o desenho de uma ave, revelando um delicado trabalho de corte do revestimento.

 Figura 10 – Interligação entre ambientes, ventilação tubular típica da arquitetura moderna e detalhe da escada de acesso ao primeiro pavimento. Fonte: Autoras, 2020Figura 10 – Interligação entre ambientes, ventilação tubular típica da arquitetura moderna e detalhe da escada de acesso ao primeiro pavimento. Fonte: Autoras, 2020

 O moderno como experiência imagética

Lara (2018) busca entender como elementos e ideias espaciais do modernismo foram disseminados, especialmente entre estratos sociais que não possuíam contato com arquitetos. Isso foi favorecido pela consolidação urbano-industrial nos anos 1950 que criou uma cultura arquitetônica capitaneada pelo reconhecimento internacional da qualidade da arquitetura brasileira e a imagem de um país que caminhava para o futuro através da modernização. Analisando o fenômeno da disseminação da gramática moderna, classifica-o como único

(...) por nos proporcionar um contraexemplo do que seria uma ponte bem-sucedida entre a arte erudita e a arte para as massas, incorporando elementos de uma arquitetura sofisticada e altamente aclamada, e a espalhando para parte significativa da população brasileira. (LARA, 2018, p. 58-59)

Uma das explicações para a rejeição dessa forma de apropriação no âmbito profissional da arquitetura é a não utilização dos elementos modernos na sua forma “pura”, haja vista que são recombinados livremente, tal como as aplicações em pré-existências ecléticas ou neocoloniais.

Nos três exemplos abordados, identificamos semelhanças ao programa de necessidades já apontado por Lara em sua pesquisa, que revela uma gradual (embora lenta) mudança no estilo de vida, a exemplo da privacidade dos quartos que abrem para os corredores e a localização da cozinha e área de serviço na parte posterior, afastada da área social. Podemos relacionar os exemplos selecionados com o modo de morar que começou a se delinear em meados do século XX na cidade de Belém, no intuito de acompanhar a tendência proposta pelo movimento moderno, que entretanto não perdia suas raízes tradicionais. Ribeiro (2019) aponta a permanência do tradicional mesmo em programas arquitetônicos como o do Edifício Manuel Pinto da Silva: o resultado plástico se assemelha à nova linguagem, mas ainda não se observa a preocupação em criar plantas-livres, um dos preceitos da arquitetura moderna, em função das técnicas aplicadas na região que limitavam os vãos e atribuía às vedações a carga estrutural dos imóveis construídos com ou sem acompanhamento de um engenheiro (pois a formação em arquitetura só veio a se concretizar no Pará a partir de 1964 com a criação do primeiro curso na UFPA).

Apesar disso, elementos da gramática moderna (desvinculados da função estrutural) que são aplicados na fachada também ganharam espaço em revestimentos internos nas paredes e escadas, e o desejo de reproduzir um estilo de vida semelhante ao das elites é representado na instalação de banheiras. Dessa maneira, identifica-se o RQP como arquitetura de transição entre o morar tradicional e o moderno, combinando os programas de um e outro, incrementados pelo elemento estético.

Na primeira residência analisada, da conservação dos objetos e ambientes à maneira como foi concebida pode-se inferir a ânsia de cristalizar um tempo passado no presente, seja pela localização em bairro histórico ou como forma de evocar a lembrança daquele responsável por idealizar a casa, o que pode ser percebido no relato do morador entrevistado: durante a visita guiada ao interior do imóvel, apontava para os relógios expostos na sala de estar e nos quartos como itens colecionados por seu falecido pai; mesmo havendo pequenos reparos que necessitavam ser feitos, como troca de forro e substituição da pintura, o morador afirmou não ter interesse em efetuar qualquer modificação.

Embora na mesma condição de filho do primeiro proprietário, o entrevistado da segunda casa fala da estima que sente pelo lugar, mas afirma que é “uma casa antiga que pode ser atualizada” (MODESTO et al., 2013), referindo-se à necessidade de transformar os quartos em suítes, algo que não era comum na época. Outras modificações no interior foram realizadas, como troca de pintura e revestimento de piso, preservando a fachada RQP, pois o morador afirmou gostar dela. A cristalização do tempo passado se projeta também no terceiro caso, aqui justificado para honrar a memória do patriarca, e não por enquadrar o imóvel no contexto de patrimônio histórico, tema cuja discussão ainda não se observou aprofundada no município de Abaetetuba. Aqui, a permanência das características originais se caracteriza pela memória familiar, aliada a questões relacionadas à herança dos bens deixados pelo proprietário. Seu estado de conservação, a despeito de estar desocupado, pode ser considerado bom, porque não apresenta problemas como falhas em sua estrutura, descolamento da camada pictórica ou deterioração de esquadrias e forros, além de que não foram observadas modificações; questionada sobre reformas, um dos membros da família afirmou que qualquer alteração futura visaria a troca de forro, móveis e equipamentos, pois gosta do imóvel como se apresenta em sua estrutura.

Os elementos presentes na arquitetura RQP, reinterpretados segundo a ótica da classe média e popular, atuam como imagem do moderno, com o objetivo de traduzi-lo pelo que representa para esse grupo: mais do que a alteração na espacialidade que ainda dialoga com o passado, ela traz os revestimentos, os planos inclinados em marquises, colunas e beirais sem função estrutural que não podem ser resumidos como mera decoração, mas a intenção de incorporar o moderno como experiência. Usamos o termo "estética" para se referir a essa experiência de assimilação por compreender que a palavra pode ser associada a respostas sensoriais a fenômenos que se aproximam do campo artístico (CAMPBELL, 2010). Entre os usuários da arquitetura moderna assimilada, o julgamento estético é vinculado ao caráter cronológico do prédio e ao seu estado de conservação: quando consultados acerca da fachada RQP, o adjetivo usado para qualificá-la é “antiga”; e que sentiriam mais apreço se estivesse em bom estado de conservação, nos casos em que a fachada estava deteriorada (fragmentos de azulejo ausentes, infiltrações, reboco aparente, desbotamento da camada pictórica).

A memória da imagem moderna divide-se na manutenção das formas ou na atualização delas, assumindo outra aparência que não se afasta do propósito inicial, pois se trata de um esforço contínuo de alcançar o horizonte moderno. Através da imaginação, faz aparecer a coisa que desejamos para tomarmos posse (RICOEUR, 2007), anulando a distância provocada pela ausência de um projeto efetuado por um arquiteto, encenando a satisfação de “possuir” o moderno pelos seus elementos característicos.

O esquecimento, outra face da memória, não se refere somente a apagar as lembranças desagradáveis; atua no processo de recomeço apontado por Marc Augé, de abandonar aquilo que não se pode recuperar (ONANER, 2014). Tal perspectiva assume um caráter de morte se observarmos o esquecimento do RQP como algo definitivo e irreversível; contudo, o impulso de renovação tem estimulado os indivíduos para atualizar as formas, as quais ainda ecoam o desejo de suas antecessoras: expressar o novo. Assim como reflete Aldo Rossi: “por isso as cidades, embora durem séculos, são na realidade grandes acampamentos de vivos e de mortos onde ficam alguns elementos como sinais, símbolos, advertências”. (ROSSI, 2018, p. 48)

O levantamento fotográfico dessas residências proporcionou um modo de apreensão da gramática moderna assimilada no intuito de comparar as soluções estéticas e estruturais empregadas. O traço ou estilo identificados nas composições de azulejos indicam uma apropriação genuinamente paraense que encontrou grande aceitação e reprodução no estrato popular. Considerando que a arte tem como componentes a inteligência, sensibilidade e habilidade em profunda relação com o contexto cultural, é possível afirmar que o RQP é uma expressão artística popular na arquitetura, sendo entendido sob o signo da mímesis apropriada. Percebe-se relação com o exposto por Omim, que estuda o acervo de Edson Meirelles que registrou produções tipográficas de artistas e designers populares e anônimos em cartazes (OMIM, 2019). Para ela, essas são

Produções que não dialogam com os rigorosos padrões acadêmicos de perspectiva, composição, luz, cores, matizes. A “ausência de técnica” dos artistas gráficos é entendida como uma “intuitiva sabedoria plástica”, que denota um elemento do autodidatismo e da capacidade de improviso desses artistas. Assim, a alteridade e a não adequação aos regimes artísticos eurocêntricos tornam-se o ponto de partida da “originalidade” de tais expressões (OMIM, 2019, p. 23).

O domínio público do popular é composto de versões de formas que foram adotadas coletivamente, mas passíveis de serem estilizadas pelas mãos desses artistas, lançando mão de uma "intuitiva sabedoria plástica" (OMIM, 2019). Como a reprodução dos elementos da arquitetura moderna nas casas RQP: marquises de concreto, colunas e empenas inclinadas, telhado borboleta, entre outros, somados à inventividade dos desenhos gerados por combinações de azulejos fragmentados em muros e platibandas.

O RQP pode ser visto como cópia imperfeita (por nem sequer ter sido idealizada por arquitetos), mas o intuito deste trabalho é lançar luz sobre o seu valor intrínseco e independente do original. A perda da "aura" moderna possibilitou sua apropriação entre um amplo espectro da sociedade, contrariando a tendência ocorrida em outros países que viveram a experiência do movimento moderno, que não foi tão popular. E essa apropriação acaba criando a "aura" da cópia (CACHOPO, 2011), combinando arte e arquitetura que contaminou as cidades paraenses.

Algumas considerações

O homem sempre sentiu a necessidade de deixar rastros, traço característico da ação de habitar: seja em seus objetos de uso cotidiano ou na forma como ornamenta esse interior, que demonstram sua personalidade e aspectos culturais que carrega.A análise da vida cotidiana em relação à arquitetura permite o distanciamento da visão puramente racionalista que reduz a atividade projetual ao padrão de consumo vigente, levando à compreensão de que se trata de uma obra inacabada, posto que é recriada através da ressignificação. Essa perspectiva não mais coloca o profissional no papel superior de destaque, por entender que o usuário é capaz de fazer uso da cultura para traduzir o espaço construído.

O emprego de imagens modernas na arquitetura constitui um tema próprio de nossa época, suscitando discussões no campo da arte, arquitetura e antropologia. Contudo, mesmo imbuídas de intenção plástica nos pequenos detalhes que carregam várias significações, essas imagens criadas pela assimilação da gramática moderna não têm sua dimensão artística devidamente reconhecida. Por isso, destacamos a importância de evocar essas imagens como testemunhos do presente que elas foram e que virão a ser. Samain reflete sobre as imagens enquanto acontecimentos e revelações que podem interferir no homem e seu cotidiano, e “lugares de memória” e expectativas que revelam tempos no passado e presente; acredita que elas podem fornecer pistas do porvir, servindo como alerta e questionamento sobre nossa história (SAMAIN, 2014).

No processo de ressignificação do RQP, a estética dos cacos que é característica dessa manifestação continua prevalecendo no repertório popular, embora o mosaico artesanal venha cedendo espaço ao mosaico industrializado, transformado em estampa para cerâmicas que revestem pisos e fachadas. Uma estética do liso (HAN, 2019), sem arestas vivas ou necessidade de fragmentar e compor desenhos à mão, produto do mercado que vem se aproximando da experiência estética como recurso para gerar capital através dos cacos instantâneos.

Considerando o que afirma Campbell (2010) sobre a estética enquanto categoria transcultural, a arquitetura popular tem tanto significado quanto a erudita em suas experiências culturais, possuindo, portanto, os requisitos necessários associados aos elementos assimilados da gramática arquitetônica acadêmica.

Acreditamos que no RQP vale a tese proposta por Semper: uma arquitetura que exalta os valores simbólicos e metafóricos (VIANA, 2012). Defendendo que o princípio do revestimento seria o definidor da arquitetura, ele destaca a importância da manifestação artística baseada em padrões que remetem às primeiras construções e que reapareceriam constantemente. Talvez por isso encontramos tantas residências que, ao removerem o revestimento RQP, o substitui por estampas que são imagens de pequenos cacos irregulares que outrora eram produzidos manualmente. O comércio, operando na apropriação desses padrões populares para obter lucro, reproduz a tendência apontada por Lipovetsky e Serroy (2015), na qual o "capitalismo artista" explora cada vez mais a experiência simbólica e emocional que essas imagens provocam no consumidor. Atualmente, os consumidores buscam por beleza e estilo nos produtos que adquirem e as grandes organizações, cientes disso, inserem arte em suas mercadorias.

Produtos de consumo industrializados que estampam obras de arte já não são apenas vendidos em museus. Já observamos iniciativas de lojas, artistas e designers que exploraram o RQP em produtos como roupas, joias e móveis, despertando o interesse da comunidade acadêmica em consumir os mosaicos convertidos em estampas. Em 2015, a designer de joias Lídia Mara Abrahim entrou em contato com as pesquisadoras deste trabalho em busca de aprofundamento sobre o tema da arquitetura RQP como referência para uma coleção de 25 peças para o prêmio “Projetos Artísticos” do Programa Seiva de Incentivo à Arte e Cultura no Estado do Pará; em 2018, Karolina Norat, discente do Bacharelado em Design de Produto da Universidade do Estado do Pará (UEPA) também fez uso de pesquisas anteriores para propor uma linha de mobiliário em seu Trabalho de Conclusão de Curso. Ambas destacam o potencial de conversão em linguagem artística que essa manifestação carrega e a relevância das pesquisas acadêmicas que permitiram aprofundar o (re)conhecimento da arquitetura moderna popular paraense.

Portanto, esse movimento nos permite propor a hipótese de que a arquitetura RQP, longe de se extinguir, estaria na realidade se transformando em imagem, em que o padrão visual dos painéis de raios é ressignificado como tema para aplicações diferentes da intenção original.

Agradecimentos

A primeira autora agradece ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) o afastamento para doutorado, o que possibilitou o desenvolvimento desta pesquisa junto ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (PPGAU-UFPA) e ao Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO-UFPA).

 

Referências

CACHOPO, João Pedro. A aura na era do seu anunciado declínio: Em torno de Cópia fiel de Abbas Kiarostami. Viso - Cadernos de estética aplicada. Vol. 5, no. 10, 2011, p. 44-55. https://doi.org/10.22409/1981-4062/v10i/110

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Nota:

1 Artigo baseado na pesquisa em andamento para a Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, intitulada “Arquitetura como imagem: a ressignificação do Raio que o parta no Pará”, com defesa prevista para março de 2023.

 Minicurrículos 

Laura Caroline de Carvalho da Costa

Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo UFPA, Arquiteta e Urbanista (UFPA, 2013), Bacharel em Design (UEPA, 2010), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA, 2015) e Professora do Instituto Federal do Pará.

Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7341320570006671

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Cybelle Salvador Miranda

Arquiteta e Urbanista (UFPA, 1997), Mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA-UFPA, 2000), Doutora em Antropologia (UFPA, 2006), Professor associado III (FAU-UFPA/ PPGAU-UFPA), Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA) e do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural da FAU-UFPA.

Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3254198738703536

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Como citar:

COSTA, Laura Caroline de Carvalho da; MIRANDA, Cybelle Salvador. A experiência imagética na arquitetura “Raio que o parta”.

5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 17, v. 01, n.23, e208, p. 1-20 jan. jun/2022. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/periodico/ciencias-sociais-aplicadas/392-a-experiencia-imagetica-na-arquitetura-raio-que-o-parta

 Submetido em: 2022-03-06                  

Aprovado em: 2022-04-06

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