SÓIS
RICARDO CARRANZA
Poemas publicados na Triplov, em 27/03/2019, disponível em: http://triplov.com/sois/
Sóis
O Livro da Insônia
... na vida psíquica nada do que uma vez se formou pode perecer...
Freud
Da insônia reserva sóis de matizada angústia.
A lágrima
oleosa do ontem
leva aos olhos
exaustos
do amanhã.
Da janela vê
como aderna
a imensa barca
roída de sol.
De posse
do campo de
alvura
labora
a divina
grandeza
do grão.
Ó rosa,
ó corrosiva.
Do sol da noite
prospera
teu perfume.
A distância
é lente da tua
exuberante ausência.
A forja do silêncio é o teu segredo ó rosa, ó corrosiva.
Na escrita in vitro banhado de estanho,
sóis negros
estreitam
cosmos
um
como eu
em beleza
e destino.
Estrelas tácitas explodem no meu caos interior.
Meus pés
repousam
no doce,
escuro,
frio
anseio da terra;
meus olhos
pousam
na verdura
escura
de sol;
e eu me sussurro –
lúcida luz,
sombra não é medo,
sementes frutificam sol enraízam noite renascem na lavra da insônia.
Minhas cicatrizes eternas sangram à sombra do sol negro coagulam.
Tudo recai sobre mim: soco, náusea, farpa.
Em você,
pássaro da noite carne da minha carne o espelho rachado a flor
de pranto
macerada.
Tudo encarde, recrudesce, arde.
Por você
a palavra clara,
o riso
claro bálsamo
com que brindamos
a frágil
alegria
de viver.
Respiro na áspera encosta do dia a coisa que falta –
que sempre falta,
milagre:
o velho
realimenta o fogo
do encarnado ensaio.
Anoiteço gênio pétala lanterna sobrevivente de um dia remorso remoto repasso pássaro furta-cor
músico de ruídos.
Em mim,
sangrias
de renascentes
gotas
à luz
do sol
da noite.
(A sobrevivência não é anfitriã muito delicada.)
Ensaio vozes
ecos da minha origem:
– Eu sou a luz do mundo!
Na calçada de casa,
ofereço
meu inocente rosto
ao mundo.
Bom dia!
Como vai!
Tudo bem?
Graças a Deus!
Macho e fêmea
depois de cortinas
fechadas
prioritariamente.
Nas sombras da tarde,
o féretro –
meio comovido,
meio aliviado,
meio olhando as horas.
E o gozo é trégua,
a divina trégua.
Da janela
vejo a floração,
ano após ano –
glaciais estrelas vermelhas indiferentes às sutilezas de um único dia.
O primeiro olhar através da gaze –
pés
apalpam imprecisos
a morte da inocência
enquanto deuses
exalam ambrosia.
Noite
semeada de estrelas
a giz na calçada.
E uma fala
– Prazer revê-la.
Noite após noite
de sol,
recupero
as mãos impregnadas
do estranho perfume
nas águas
imaculadas
da solidão:
Poesia é lágrima no abismo de dentro.
Caminho no paraíso do momento:
verde-petróleo,
prata-brilhante,
mate,
sépia,
rosa-chá,
amarelo-pálido,
amarelo-limão,
ocre amarelo,
ocre vermelho,
nervuras de sol
alaranjado.
Ofuscado pela riqueza,
entro
no chiado do arvoredo,
no arrastar
de pés no cascalho,
nos rumores da vida distante.
E a voz aguda
de criança –
minha um dia –
arranham
meu ser invisível.
Iluminado,
colho a folha
oxidada de sol:
verde lembrança.
Por que reter
a seiva vermelha
à folha branca
de celulose e ausência?
Por que não
alavancar o futuro
no artifício da queda do brasonado orgulho?
Tomo fôlego.
Reergo-me deus
poético e mortal.
Aspiro o tânico ar da chuva.
Coração ligado ao estômago confronto a palavra mordente:
flor
infeccionada da infância
impõe
o refluxo do passado:
acidez, queimação, susto, desespero:
o inferno não me é estranho.
Noite, víscera noite.
Sol negro,
chiado
de brasas molhadas,
quartos familiares
a hálito de estômago.
Quantas eternidades,
quanta claustrofobia
até a razão
de oscilante outono?
Saciado de luz,
celebro
o desprezo ao sangue.
O que vale a pena sem os ornamentos da salvação?
Entre vitrines,
salas de veludo,
o espanto do cristal estilhaçado:
– Tu vendeste o Cristo!
– Tu incendiaste Roma!
Na incomensurável luz
da solidão,
pequenas coisas são a divindade:
bichinho de estimação, florzinha na relva, figo nevado de açúcar.
Gema esmeralda ossos dourados oceano branco azul.
O tempo
que drena como água nas estrias dos meus dedos,
que adensa dunas, desidrata flores, devora o peixe e ostenta a espinha,
lambe
os meus pés
em ondas
de espuma.
Do azul anil –
sequestro infância,
a lenta brancura
de nuvens,
a linha luzente
do areal.
A mulher,
mar na borda do seio,
larga os braços à rebentação.
A gaivota
zap!
investe um arco
prateado
de sol.
Eu mal respiro.
Sigo caminho –
não tenho abrigo,
afinado ao zumbido de moscas e abelhas.
A luz modela corpos recorta a pedra carrega o estouro grave da rebentação.
Da mesa ao lado, a voz se arrasta.
– Leu o Quarteto de Durrell?
Rosto
escavado no tempo
se ergue altivo
ao meu olhar
reflexivo.
– Não – disse ao sol da sua morte.
– Eu já! – disse em luciferino sopro raspado.
Na borda do assoalho a espuma do mar salta.
Durrell Lúcifer estouro do mar, hoje gota de tinta no papel.
Fogueira cadeiras na calçada conversas a meia voz cortina entreaberta
homem entre as coxas da mulher grito retido na garganta.
Rosto amassado dentes de âmbar corpo gasto de água e sol.
Meu nome salta em voz de suplício –
Ricardo!
Sete vezes
sete pecados capitais
entre quatro
paredes mudas.
Abelhas zumbindo
no beiral da casa.
A velha senhora
enxuga as mãos no avental manchado desalinhado esfiapado
– Não mexam na casa da abelha.
Crianças,
aos gritos,
correm pela rua.
O velho senhor curtido a cigarro
– Na noite de ventania – babau! – o diabo levou o menino.
– Não! – grito aterrorizado.
O trio sobe a rua em fila indiana:
filha,
mãe-solteira,
pai-avô.
(O pai-avô morre antes de ver a filha decapitada num desastre,
a mãe-solteira fica pra desfiar seu rosário.)
A veneziana
do quarto da mãe do filho idiota
bate com o vento:
uma lasca de madeira explode
feito vaso de vidro na calçada.
O vento espalha as cinzas do incêndio.
Cinge
meus olhos reversos
a desidratada folha na noite escura fria de inverno arde fibra de sol
chuva
no campo verde vermelho
chuva
na telhas carcomida de musgo
chuva
na porta caindo aos pedaços cheia de trancas
chuva
na fogueira de içás vivos
chuva
na ladainha pavorosa da viúva
chuva
na velhinha dedicada ao buquê de miudinhas folhinhas de mato
chuva
no pequeno caralho entre as pernas duro de ferro escondido de Deus
corte
na escada sangue
corte
voz de materno suplício tarde azul longe o vento no eucaliptal
corte
mais longe
o acalanto
envolve todo o meu corpo
corte
ai!
meus olhos
noite escura de sol.
Aceito
do dia a noite
insone
como o sono
do amanhã.
Mãos
de rosa tocam o sonho
flor
da pele do instinto.
No óleo do ontem
unto
a partícula cadente
de insônia.
Deus
eternamente humano,
dou cor ao pássaro
perfumado
da terra molhada.
Suscetível
como a cambraia,
o mundo ilumino.
Uma dor
desperta comigo
à luz do sol insone.
Reconheço a vertigem,
velha companheira.
Ousaria... decapitá-la?
Cortar de vez sua presença?
Elevaria
meu ínfimo sopro
acima
da tirania do tempo?
Em minhas mãos
o pássaro sombrio,
a respiração,
o calor animal.
Em quietude,
em febre de sonho,
passamos a noite
irmanados.
O amanhecer
é a hora do adeus:
o sol
apaga o mundo.
Em mim a luz
da noite insone.
Minha pálpebra
animal se abre
ao silente drama
em que sou
plateia ator
– carne vermelha
embrulhada em jornal,
coroa de papel
em chamas,
vênus
salpicada de pólen,
deus
travestido de homem.
De minha voz
interior palpita,
gutural e rouca
– Somos mais tubérculos que pássaros!
(Porque a queda nos humaniza.)
De manhã
um sol protocolar
incita
o vão combate.
Janelas
azul celeste,
violeta,
amarelo sódio,
rosa bebe,
rosa encarnado,
branco marfim.
Janelas
em busca de coragem,
esperança,
eternidade.
Pétalas de luz
passo da noite
adormecem.
Minha janela
apaga,
adormeço.
Ao meu nada
lavado de chuva
a dor concede o encantamento.
Noite
o ar da chuva
inspira.
Da janela
vejo a pedra leve
de véus de luz.
entre
os ramos da noite.
– Boa noite.
– Dorme bem.
Incessante
forma do passado.
Tantos passos
e dança por um dia.
Quantos passos,
dança e guerra
por um dia
escuro de sol?
Ó noite
de centelha e frio,
dai-nos o hábito
da paz.
Janelas acesas nos ramos da madrugada.
No meu quarto
polvilhado de cinzas
um trinado,
um grão esplêndido de sol
dissipa o véu
dos meus olhos,
o chiado
dos meus ouvidos.
Infinitas luas de vapor de sódio,
ao canto
um ramo é o bastante.
Nada vence a folha nova,
a semente de luz.
Ao canto
basta o desprendimento.
Minha lanterna
incendeia um céu
seco de estrelas.
A quem
chegarão estas folhas
a desdobrarem-se extrato
do incerto grão?
Dedicado
ao ofício do momento,
mãos densas do sol da noite,
sexo ébrio de mosto,
jogo lúdico
à espreita
da incompletude inseparável
minha e sua –
a quem
o ofício da palavra?
Só a troca (amor) nos pertence.
Depois de recontar
os segundos
de um minuto
de silêncio,
luz de primavera é o paraíso.
Chuva de primavera frutifica a seca enraizada de inverno.
Cada artéria prima na geração da flor.
Pássaros e sóis da noite
renovam
brotos e botões.
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