CIDADE E PSIQUE
“...a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que a surpreendente exceção.” Freud
Uma das teses centrais de Freud trata da psique como soma e síntese de todas as experiências do ser humano. A conservação do passado nos permite o auto reconhecimento em qualquer instante de nossa existência. Graças a psique, temos a segurança da identidade e, ao mesmo tempo, a vivência de situações do passado, para o bem ou para o mal, carregadas de emoção.
O potencial, a nosso ver, de dispor do passado no presente constante, delimita o papel de cérebro e psique. O emaranhado de neurônios e microneurônios, órgão da psique, é induzido a um encadeamento específico, como uma constelação, a partir de uma situação inesperada, como o famoso episódio da madeleine de Marcel, alter ego de Proust. Freud vê no acidente o processo da psique. E na preservação do passado sua função. Para exemplificar sua tese, Freud recorre à descrição de estágios históricos de Roma e com isso desenvolve um raciocínio que se bifurca na impossibilidade de se representar visualmente a psique e o porquê. O interesse do tema, a nosso ver, reside tanto na obra de Freud, que lemos e relemos, como na interface entre arquitetura e psicanálise, porque trabalhamos sobre o conceito da arquitetura integrada a um contexto cultural mais amplo.
Os historiadores ensinam que a mais antiga Roma foi a “Roma quadrata”, um povoamento rodeado de cerca no monte Palatino. Seguiu-se então a fase do “Septmontiun”, uma federação das colônias sobre os respectivos montes, depois a cidade que foi cercada pelo muro de Sérvio Túlio, e ainda mais tarde, após todas as transformações do tempo da república dos primeiros césares, a cidade que o imperador Aureliano encerrou com seus muros. Não acompanharemos mais as mudanças sofridas pela cidade. Perguntemo-nos agora o que um visitante da Roma atual, munido dos mais completos conhecimentos históricos e topográficos, ainda encontraria desses velhos estágios. Excetuando algumas brechas, verá o muro de Aureliano quase intacto. Em certos lugares achará trechos do muro de Sérvio, trazidos à luz por escavações. Se tiver suficiente informação – mais do que a presente arqueologia – , poderá talvez desenhar, no mapa da cidade, todo o traçado desse muro e o contorno da “Roma quadrata”. Das construções que um dia ocuparam essa moldura ele achará, quando muito, vestígios, pois elas não mais existem. O melhor conhecimento da Roma republicana lhe permitiria, no máximo, indicar onde se localizavam o templo e os edifícios públicos da época. Nesses lugares há ruínas atualmente, não das construções mesmas, porém, e sim de restaurações de épocas posteriores, feitas após incêndios e destruições. Não é preciso dizer que esses resíduos todos da antiga Roma se acham dispersos no emaranhado de uma metrópole surgida nos últimos séculos, a partir da Renascença. Seguramente, ainda muita coisa antiga se acha enterrada no solo da cidade ou sob construções modernas. É assim que para nós se preserva o passado, em sítios históricos como Roma.
Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não seja uma morada humana, mas uma entidade psíquica com um passado igualmente longo e rico, na qual nada que veio a existir chegou a perecer, na qual, juntamente com a última fase de desenvolvimento, todas as anteriores continuam a viver. Isto significa que em Roma os palácios dos césares e o “Septizonium” de Sétimo Severo ainda se ergueriam sobre o Palatino, que o Castelo de Sant’Angelo ainda mostraria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a invasão dos godos etc. Mais ainda: que no lugar do palácio Caffarelli estaria novamente, sem que fosse preciso retirar essa construção, o templo de Júpiter Capitolino, e este não apenas em seu último aspecto, tal como viam os romanos da época imperial, mas também naqueles mais antigos, quando ainda apresentava formas etruscas e era ornado de antefixas de terracota. Onde está agora o Coliseu poderíamos admirar também a desaparecida Domus Aurea, de Nero; na Piazza della Rotonda veríamos não só o atual Panteão, como nos foi deixado por Adriano, mas também a construção original de Agripa; e o mesmo solo suportaria a igreja de Maria Sopra Minerva e o velho templo sobre o qual ela está erguida. Nisso, bastaria talvez que o observador mudasse apenas a direção do olhar ou a posição, para obter uma ou outra dessas visões.
Evidentemente não há sentido em continuar tecendo essa fantasia, que leva ao inimaginável, ao absurdo mesmo. Quando queremos representar espacialmente o suceder histórico, isso pode se dar apenas com a justaposição no espaço; um mesmo espaço não admite ser preenchido duas vezes. Nossa tentativa parece uma brincadeira ociosa; ela tem uma justificação apenas: mostra-nos como estamos longe de dominar as peculiaridades da vida psíquica por meio da representação visual.
Adotamos as aspas simples para as palavras que no original figuram em itálico. [N.A.]
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
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