O chafariz de Marcel
EDITE GALOTE CARRANZA
RICARDO CARRANZA
Durante leitura em voz alta da obra "Em busca do tempo perdido" de Marcel Proust, nos deparamos com a descrição do chafariz do parque de Saint-Cloud e julgamos interessante reproduzi-la aqui pela junção de literatura, pintura e arquitetura sob o olhar inspirado de Marcel, alter ego do autor. A passagem está no IV volume intitulado "Sodoma e Gomorra", p. 79-80. Tradução Mário Quintana. A descrição é uma síntese da estética de Proust, que adota as artes em geral como mediadoras de sua literatura.
“... recuperei alguma faculdade de atenção ante o pensamento de ir ver o famoso chafariz de Hubert Robert" 1
Numa clareira aberta por belas árvores, algumas das quais tão antigas quanto ele, afastado, a gente o avistava de longe, esbelto, imóvel, duro, não deixando que a brisa agitasse senão a recaída mais leve de seu penacho pálido e fremente. O século XVIII depurara a elegância de suas linhas, mas, fixando o estilo do chafariz, parecia ter-lhe paralisado a vida; àquela distância, tinha-se mais a impressão da arte que a sensação da água. A própria nuvem úmida que se amontoava perpetuamente no seu fuste conservava o toque da sua época, como as que no céu se ajuntam em torno dos palácios de Versalhes. Mas de perto verificava-se que, muito embora respeitando, como as pedras de um palácio antigo, o desenho previamente traçado, eram águas sempre novas que, lançando-se e desejando obedecer às ordens antigas do arquiteto, só as cumpriam exatamente parecendo que as violavam, pois apenas os seus mil saltos esparsos podiam dar à distância a impressão de um único jato. Este era na realidade tantas vezes interrompido como a dispersão da queda, ao passo que de longe me parecera inflexível, denso, de uma continuidade sem lacuna. Um pouco mais de perto, via-se que essa continuidade, inteiramente linear na aparência, era assegurada, em todos os pontos da ascensão do jato, por onde quer que ele deveria romper-se, pela entrada em linha, pela retomada lateral de um jato paralelo que subia mais alto do que o primeiro, e era ele próprio, a uma altura mais elevada, mas já fatigante para ele, rendido por um terceiro. De perto, gotas sem força retombavam da coluna d’água, cruzando de passagem suas irmãs ascendentes e, por vezes esborrifadas, arrebatadas num remoinho de ar perturbado por aquele jorro sem tréguas, flutuavam antes de desabar no tanque. Contrariavam com as suas hesitações, com o seu trajeto em sentido inverso e esfumavam com o seu tênue vapor a retidão e a tensão daquele hastil, que carregava no cimo uma nuvem oblonga feita de mil gotículas, mas na aparência pintado em âmbar dourado e imutável que subia infrangível, imóvel, arremessado e rápido, a ajuntar-se às nuvens do céu. Infelizmente, bastava uma lufada de vento para o lançar obliquamente à terra; por vezes até um simples jato desobediente divergia e, se não se mantivesse a respeitosa distância, molharia até os ossos a multidão imprudente e contemplativa".
1 O pintor Hubert Robert representou vária vezes o chafariz do parque de Saint-Cloud. No primeiro volume do livro, a avó do herói presenteia o neto com reproduções desses quadros. [N. do E.]
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PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Sodoma e gomorra. v.4. São Paulo: Globo, 2008, p.79-80.
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