ASAS

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RICARDO CARRANZA

 

...Calipso, de sedosa pele, reencetou a conversa: “Ilustre filho de Laertes, linhagem de Zeus, prodigioso Odisseu, quer dizer que pretendes retornar a tua terra natal sem mais delongas?

Odisseia, Homero.

I

 Estou imerso na nave do Cine Sesc e contemplo, comovido, a escrita do poema. Vejo na folha branca versos rastreados à tinta pela mão do contador de histórias.

Quando a criança criança era

andava balançando os braços

Uma massa de nuvens. Um olho. A cidade vista do céu.

No alto da catedral, um homem com um par de asas evanescentes; gêmeas observam da janela do ônibus o anjo urbano; um avião sobrevoa Berlim Ocidental; monólogos passeiam pelo ar como afetos aéreos sem destino. O anjo da catedral caminha no bojo do avião, ao ser notado por uma criança ele a contempla, esboça um sorriso.

A voz do contador de histórias encorpa seus versos da fala ao canto.

Quando a criança criança era

Desejava que o riacho fosse rio

que o rio fosse torrente

e essa poça

o mar

Anjos passeiam pela Berlim Ocidental. São seres de elegância austera: longos sobretudos apropriados ao presumível inverno. A imagem é monocromática, anjos desconhecem a cor. Anjos se comunicam através do olhar, sua razão de ser é a solidariedade, e em alguns momentos falam como nós, os humanos. Anjos são seres de presença sutil. Anjos são homens e mulheres, a diversidade das etnias é mantida do lado humano do mundo. Anjos são elegantes, o sobretudo, o rabo-de-cavalo, o ar austero e suave ao mesmo tempo. A imagem parecia plausível e isto ainda me deixa intrigado.

Asas do Desejo é uma narrativa visual. Compreendemos a decisão de Damiel. Ele avalia entrar no tempo e arriscar a eternidade pelo que vemos muito mais do que por suas palavras a Cassiel, o anjo com quem troca confidências sobre essa questão crucial. Devo trocar a eternidade pela finitude? pensa Damiel. Ele vai às arquibancadas do circo mambembe e acompanha as evoluções da mulher no trapézio. Damiel se apaixona. Vemos o encontro de ambos na intimidade do trailer, a moradia provisória do mundo provisório de Marion. Ouvimos seus monólogos diante do rosto plácido de um Damiel encantado que pensa arriscar tudo por Marion.

Anjos voam e caminham em Berlim Ocidental. As imagens de anjos são adequadas às cenas como na composição de uma pintura. Lembro-me que Shakespeare adotou critério semelhante. O príncipe Hamlet depara-se com uma aparição nas ameias do castelo, quando a substância da peça é relatada - Eu sou o espectro do teu pai - diz o Rei Hamlet em armas; mais adiante, durante a cena edipiana nos aposentos da rainha-mãe, o espectro reaparece vestindo um robe de chambre, o que talvez possa nos parecer grosseiro, ao menos Sir Lawrence Olivier, em sua versão da tragédia-enigma nos apresenta o espectro como uma nuvem fugidia com voz tonitruante. O bardo elisabetano concebera a cena como um retrato de costumes. A coerência visual sobrepõe-se à identidade formal do personagem. Essa questão será retomada mais adiante.

Anjos voam sobre a imensa ferida amurada de Berlim Ocidental. O muro, do lado oriental, é branco, limpo e vazio; o ocidental é congestionado de grafites coloridos. Os personagens se dividem em anjos e homens, em alguns momentos é notável a alternância de papéis - um homem confessa já ter sido um anjo que escolheu a dimensão provisória das finitudes temporais; homens sobrecarregados do conflito nem sempre conciliável de suas necessidades pessoais; o contador de histórias vê o tempo presente como se houvesse sido lançado a ele de um outro tempo - o café que estava acostumado a frequentar já não existe mais; casais são flagrados em momentos de tensão; é uma cidade dividida onde Marion procura o nexo da sua divisão interna.

 A presença do tempo na Berlim Ocidental. De um lado o tempo dos anjos, e eu lanço mão do comentário de David Harvey - A condição Pós-Moderna, p.282, 1989 - "estando fora do tempo humano do vir-a-ser, eles existem no domínio do puro espírito, no tempo infinito e eterno"; e nisto pode residir a dificuldade de concepção do filme: como representar o sempre? Eu, diante do computador, penso que o sempre é para nós humanos, ancorados na interseção do passado com o futuro - o presente constante, nada mais. Os anjos em seu lado do tempo conversam, tomam notas, observam, contemplam, sem um maior envolvimento emocional conforme vemos em suas peregrinações. Não há entraves temporais. Os anjos participam da vida na cidade: ônibus, lavanderia, loja de carros e a biblioteca, o lugar onde se encontra, curiosamente, a concentração de anjos. Lembro-me da angústia que eu senti quando o anjo Damiel, imerso na biblioteca, ouve o zumbido de pensamentos da colmeia humana universal.

Há uma investida decisiva sobre a questão do tempo na cena em que Damiel e Cassiel sobem uma escada junto ao rio e evocam a origem do mundo através de brumas, campos, um árvore; imagens que se alternam representando o simultâneo na dimensão dos anjos, estes habitantes do sempre, esta outra palavra para o eterno. Damiel e Cassiel revivem o passado remoto. Recordam a formação das águas, o surgimento do primeiro bípede. Mas para recordar é necessário a percepção de diferenciação que corresponde ao tempo. Anjos são fora do tempo. Seria essa a consciência de seres fora do tempo, sendo que consciência e memória devem formar um todo coeso? Próximo ao rio, os dois anjos discorrem sobre a passagem das eras enquanto permanecem no espaço finito dos homens, visíveis como num sonho durante as imagens que correspondem à uma digressão. Trata-se de uma limitação da linguagem cinematográfica ou precisamente a condição de nosso ser histórico? Ou como representar o sempre, como imaginar uma experiência fora da nossa consciência de homens já que não sabemos, creio eu, como existir fora do tempo? 

Damiel confessa a Cassiel seu desejo de ir além do mundo monocromático dos anjos. Ele gostaria de ter peso, de ter consistência. Damiel caminha na biblioteca. Há uma concentração de anjos durante a faxina noturna. Vemos a faxineira árabe que passa o aspirador de pó enquanto alguns anjos se reúnem silenciosamente em um recanto. Em outro momento, ainda na biblioteca, entre leitores, está o contador de histórias. O velhinho alquebrado vive na companhia de seus pensamentos. Junto de Cassiel, o contador de histórias considera a possibilidade de desistir, mas não; ele vai em frente, vacilante, quase cego, a humanidade não pode perder o seu contador de histórias, pois perderia seu lado criança, ele pensa. Na biblioteca, Damiel aproxima-se do ser humano e apanha o lápis. Vemos o espectro de um anjo apropriando-se do espectro de um lápis. Damiel comenta com Cassiel o quanto admira observar o lado espiritual dos humanos, mas não é tudo para ele. Gostaria de tirar os sapatos embaixo da mesa e esfregar os dedos dos pés! A insatisfação de Damiel já é humana.

Damiel e Marion. A trapezista de circo mambembe sente o vazio existencial comum a todos nós. Damiel parece fascinado. Ele segue seus passos. Ouvimos de sua voz interior que ela teme cair do trapézio, o circo está falido, ela aguarda sua última apresentação da curta temporada, pensa na morte e sente medo. Damiel ouve, aproxima-se, e ela sente uma estranha onda de bem-estar. Um sopro de paz a faz olhar em volta, vasculhar o interior do trailer vazio.

Para seres da eternidade, e quem sabe pela razão de estarem deslocados, os anjos possuem um raio de ação limitado. Eles partilham da vida humana, acompanham seu lado espiritual. Damiel percebe um homem no vagão de metrô que está em desespero; o anjo, sentado ao seu lado, aproxima-se inclinando a cabeça ao homem que então recobra a coragem de enfrentar a vida. Os anjos não são numerosos, não conhecem limites de espaço, e não se envolvem emocionalmente com os humanos. Uma situação extrema nos mostra o contrário. Cassiel acompanha um rapaz no alto de um prédio que caminha à extremidade da laje ouvindo o comovente e sombrio rock alemão de Nick Cave. Algumas pessoas o acompanham de uma certa distância, mãos suplicantes acenam para ele. O rapaz senta na borda do edifício. Cassiel se faz próximo, inclina-se para ele. O rapaz se joga e Cassiel se desespera - Nein! - ele grita. - E uma vertiginosa sequência de imagens descrevem sua angústia. Os anjos, em alguns momentos, parecem partilhar a nossa dor.

 Versos cantados pelo contador de histórias.

Quando a criança criança era

não sabia que era criança

Tudo era cheio de vida

e a vida era uma só.

Quando a criança criança era - imagem e frase de abertura nos colocam diante do único mito possível nesta fábula de adultos sobre o nosso lado criança preservado pelo contador de histórias. O velho alquebrado perambula por áreas desoladas da cidade. Acompanhado de Cassiel, ele procura reencontrar o café da sua juventude, só vê as ruínas de uma cidade devastada pela guerra. Aviões de bombardeio sobrevoam o céu de Berlim. A população foge aterrorizada. Longas filas de cadáveres estão alinhados no chão. É o saldo da guerra. Uma senhora leva um lenço ao rosto. Duas crianças mortas fecham a cena, e eu mal posso conter a dor e o arrepio que me fustiga as pernas e a cabeça enquanto escrevo.

Damiel e Cassiel estão ao lado do muro imaculado dos camaradas socialistas. Manifestam comedida empolgação sobre como deverá ser o primeiro dia no tempo, entre os humanos. O desejo de Damiel provoca risos em Cassiel. Inconsciente no mergulho em sua própria lenda, Damiel é carregado para o outro lado por Cassiel. Damiel vai ao encontro do tempo, da dor e de Marion, a trapezista exilada em seu próprio mundo. Marion também seria um anjo? Há precedentes. O ator Peter Falk, famoso pela série de tv americana Columbo, está em Berlim trabalhando em um filme sobre a grande guerra. Ele representa ele mesmo, ao mesmo tempo em que é o americano médio arquetípico: gosta de cigarros, café bem quente, esfregar as mãos em uma noite fria, nostálgico das cidades que conheceu, dos amigos que valem a pena; é o americano médio impregnado de lugares-comuns, bonachão e carismático enquanto não espeta a estrela de xerife no peito. Quando sente aquela sensação de bem-estar, já experimentada por Marion, sabe que eles estão por perto. Peter Falk encontra Damiel, agora no tempo, no set de filmagens e o reconhece. Conversam, trocam confidências sobre a primeira vez e Peter Falk lhe oferece alguns dólares. "A entrada de Damiel neste mundo humano agora está firmemente situada nas coordenadas do espaço social, do tempo social e do poder social do dinheiro. - David Harvey, p.286".

            - Você precisa me contar tudo.

            - Não é assim - responde Peter Falk.

Damiel deverá saber por ele mesmo.

Ele encontra Marion em um show de Nick Cave. Na intimidade de um balcão de bar, ela discorre sobre como duas pessoas devem se amar. Eles estarão juntos de agora em diante. Damiel ouve encantado. Eles assumem o compromisso depois de uma subentendida noite de amor.

Tudo está bem quando acaba bem, como bem disse o bardo inglês.           

Damiel segura a corda para que sua amada trapezista aprimore sua técnica. Ela está suspensa e ele, bem plantado no solo, olha para o alto compenetrado em seu novo mundo.

II

O monólogo interior; o mundo do sempre e o mundo do homem em permanente mudança; a desconexão entre os pares; a vertigem provocada por um mundo aberto à intimidade de todos; a angústia provocada pelas terrificantes imagens da guerra; o lirismo do encontro entre a trapezista e o ex-anjo; pais preocupados com o filho que ouve rock em demasia; o casal que se agride no carro, que se agride em casa; o filho que perdeu a mãe e aceita o fato com uma neutralidade administrativa; a jovem prostituta tiritando de frio pensa na falta do namorado; a senhora solitária monologando incongruências - como a vida é rica em conflitos! E mesmo assim quantos anjos teriam passado para o lado dos humanos? Há uma linha de revolta que permeia Damiel, uma linha não mencionada. Ele decide renunciar à eternidade em busca de uma nova experiência de vida real. Ele repete a trajetória de Odisseu que renunciou a eternidade na companhia de Calipso. Sabemos pouco das leis dos anjos, em um momento apenas Cassiel fala em manter a palavra. O que não chega a fazer de Damiel um insurrecto. E contra quem se rebelar se Deus é representado pelo silêncio?

Por que sou eu e não você?

Por que estou aqui e não ali?

David Harvey escreve sobre pontos comuns entre Asas do Desejo e Blade Runner, este dirigido pelo inglês Ridley Scott, ambos produzidos na década de oitenta.

Blade Runner trata abertamente de insurreição. Androides semelhantes aos humanos, e excedendo-os em força e especialização, revoltam-se na colônia penal em que trabalhavam como escravos, e voltam a Terra à procura de dados sobre o destino comum de sua série, a Nexus 6: data de ativação, morfologia, longevidade: tempo - quanto lhes resta?

A natureza revela sua dimensão de estranhamento em relação ao homem que ela própria gerou na medida que este homem procura um significado para si na tentativa de recriar-se através da tecnologia, este recurso conquistado pelo homem e que assume o status de instrumento de investigação e controle da mesma natureza que o controla e assim o homem pensa poder equiparar-se a sua mãe primordial, ou até mesmo, superá-la.

Ainda um terceiro filme pode ser associado aos anteriores. Solaris do russo Andrei Tarkovski – de 1972, roteiro extraído da obra homônima do polonês Stanislaw Lem, escrita em 1961. Numa estação espacial, fenômenos devastadores estão ocorrendo. Devido à presença de uma fonte de energia, algo como um oceano neurológico, os tripulantes da estação Solaris enfrentam materializações de seus conteúdos psíquicos - culpas, obsessões, que entram em suas vidas de forma real e perturbadora.

Apesar de bem diferentes, os três filmes possuem algo em comum, na esteira das considerações de David Harvey, sobre a função do par romântico na pós-modernidade, seu potencial em ainda satisfazer as necessidades de um desfecho razoável - “Devemos concluir, afinal, que é somente o amor romântico que faz o mundo girar?” David Harvey, p.287.

Em Asas do Desejo, Damiel decide abandonar sua condição de anjo e aderir à vida humana em companhia de Marion, e temos o par romântico composto por uma mulher e um ex-anjo; em Blade Runner, Rachel, a bela androide que se rebela ao desconfiar de sua verdadeira identidade, é um replicante um nível acima de Nexus 6, recebeu implantes de memórias afetivas, e será aceita por Decker, o caçador de androides, como sua companheira. O par romântico é então formado por um homem, embora haja suspeitas – será Decker também um replicante? – e uma androide; em Solaris a situação é sombria: o par romântico envolve um homem e a memória materializada de sua falecida esposa; a culpa enraizada na memória ganha corpo, literalmente, durante sua missão espacial. Alguém questiona o disparate dos três casais? “a diferença entre o replicante e o ser humano fica tão irreconhecível que eles podem até se apaixonar um pelo outro” David Harvey, p.281. Talvez tudo isso seja tão plausível simplesmente porque estão em um contexto adequado. Uma obra de arte é feita de artifícios. Um filme é feito de artifícios visuais e sonoros. Talvez Shakespeare tenha razão em adequar o espectro do Rei Hamlet à ambiência da cena. Há uma fala interessante em Asas do Desejo sobre o tema.

            – Consiga uma boa roupa, isso é meia batalha ganha. – disse Peter Falk, aliás, Columbu, no set de filmagens.

Como então representar a essência através da aparência? À essa velha questão, a resposta do contador de histórias.

 

Quando a criança criança era

não tinha opinião

não tinha hábitos

sentava-se de pernas cruzadas

saía correndo

tinha um redemoinho na cabeça

e não fazia pose para fotos.

 

Ricardo Carranza. Escritor. Editor da revista eletrônica 5% Arquitetura+Arte ISNN 18081142.

PUBLICAÇÕES em Antologias de Concursos Nacionais – SCORTECCI, SESC DF, revista de literatura - CULT, e sites de Poesia e Literatura – Zunái, Stéphanos, Germina, Cult - Oficina Literária, Mallarmargens. LIVROS de Poesia publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do autor, SP, 2011; Dramas, Editora G&C Arquitectônica Ltda., SP, 2012. Livros de Poesia Inéditos – Sebo 2009-2016; Sóis, 2014-2018; Pastiche, 2016, – parcialmente publicado na revista Germina. Ovário de Areia 2009-2018; Memorial da Mundanidade 2018. LIVROS de Contos Inéditos: A comédia dos erros, 2011/2018 – pré-selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2018; Anacronismos, 2015/2018. A vila. 2016/2017. Natal. 2016/2017. Romance inédito: A Sociedade de Cascas, 2017/2018. Cadernos de Insônia (58): esboços de poesia, contos, reflexões, teoria crítica, espinhos, sonhos, fragmentos... desde 2009.

 

 Como citar:

CARRANZA, Ricardo. Asas. Revista 5% arquitetura + arte, São Paulo, ano 13, volume 01, número 16, pp. 98.1- 98.X, ago. dez. 2018. disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/uncategorised/asas

 

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