Arquitetura, contracultura e sustentabilidade: Parte 1

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 EDITE GALOTE CARRANZA

 

PARTE1 – CONTRACULTURA E ECOLOGISMO

A CONTRACULTURA foi um movimento social que surgiu e tomou corpo em um período histórico conturbado. Foram tempos marcados pela Guerra-fria - conflito que dividiu o mundo em dois blocos: de um lado o EUA capitalista e de outro a URSS socialista, e que teve como consequências a corrida armamentista nuclear, a conquista espacial e a Guerra do Vietnã.

A tônica do movimento de Contracultura ou “underground” foi o questionamento do establishment, ou seja, das instituições culturais dominantes, seus tabus culturais e morais, costumes e padrões comportamentais. A palavra de ordem do movimento foi “drop out”, ou cair fora da família, das instituições e de toda e qualquer forma considerada repressiva, e buscar uma vida alternativa que resgatasse valores da natureza.[i]

Em A Contracultura, livro clássico sobre o tema, o historiador Theodore Roszak examinou as origens do ideário Contracultural nos USA e identificou seu cerne no movimento Beatdos anos de 1950 (ROSZAK, 1972), cujos mentores foram o poeta Allen Ginsberg autor do poema,  Howl (Uivo), de 1956 – considerada a obra inaugural do movimentoe o escritor Jack Kerouac[ii], autor do romance On the road (Pé na estrada), de 1957 – considerado a ‘bíblia” da Beat Generation (Geração Beat)Outros personagens importantes do movimento foram William Burroughts, autor do romance Naked Lunch (O café nu), publicado em 1959, Alan Watts, escritor, zen budista, redator-chefe da revista inglesa sobre budismo  The Midle Way (O meio do caminho) e Gary Snyder, poeta, zen budista e ativista ecológico.

O espírito da Beat Generation está presente nos livros de Kerouac, bem como todos seus protagonistas, pois estes foram transformados em personagens de seus romances[iii]. Temas como a liberdade individual em oposição ao  status quo, a liberdade sexual, o uso de drogas e a busca da espiritualidade, presentes nos romances, influenciaram o comportamento dos jovens norte-americanos da década de 1950 e na década seguinte, em especial, os jovens hippies.

A influência de Allen Ginsberg foi grande, pois coube a ele, tanto em sua obra poética quanto em seu comportamento, ser o porta-voz da cultura e religiosidade orientais, tornando-se “o maior guru hindu da América” nas palavras de Roszak:

“ [...] desde o tempo dos beatniks. Allen Ginsberg, que desempenhou papel importante na promoção do estilo,

professa a busca de Deus em muitos de seus primeiros poemas, muito antes de seus colegas

haverem descoberto o Zen e as tradições místicas do Oriente.”

“ Há na obra de Ginsberg muito da improvisação de Charlie Parker, bem como do espírito dos action painters.

Jackson Pollack trabalhava numa tela com o compromisso de nunca apagar, nunca refazer, nunca retocar,

mas acrescentar, acrescentar, acrescentar … e deixar que a obra se transformasse por si só em

algo de singular apropriado e a este homem, neste momento de sua vida. A poesia de Ginsberg revela o mesmo

sentido de pressa e auto aniquilamento, o mesmo anelo de projetar o impulso imaginativo original [...][iv]

Outra personagem importante do movimento Beat foi o poeta Gary Snyder que participou ativamente do grupo nas primeiras décadas; posteriormente se afastou para aprofundar seus estudos sobre o Zen budismo no Japão. Ao retornar aos EUA, em 1967, foi personalidade marcante em manifestações públicas ao lado de Ginsberg e Alan Watts. Além de poeta e filósofo, Gary Snyder tornou-se um respeitável porta-voz da luta pela paz, pelo fim das armas nucleares e, principalmente, em prol das causas ecológicas e ambientais. Segundo análise da psicóloga Doris Peçanha, o movimento Beat surge como um contraponto à ordem estabelecida, em suas palavras:

(…) a ascensão do movimento Beat que surge como um contraponto à ordem estabelecida. Foi a partir dele eclodiram ondas revolucionárias de caráter novo: a luta nas universidades do sul contra a discriminação racial; o movimento de afirmação dos negros; a greve do operariado, o movimento emancipação feminina; a antipsiquiatria. Lembremos ainda da revolta estudantil em Berkeley, nos anos 64-65 que logo ganhou totalidade no país e mais tarde a Europa e o Terceiro Mundo.” [v]

A semente lançada pela Beat Genaration germinou na geração de jovens norte-americanos dos anos 1960. Nascidos no pós-guerra, essa geração viveu a abastança e a prosperidade da sociedade que, em contrapartida, suportava um forte controle social. A Contracultura, portanto, foi uma reação dos jovens à “tecnocracia” norte-americana, ou seja, a “forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional é o ideal de modernização, planejamento e racionalização que busca legitimidade nas formas científicas do conhecimento” (ROSZAK, 1972, p. 19).

De caráter libertário, a Contracultura catalisou uma série de tendências sociais críticas ao establishment, como por exemplo, hippies, yippies, defensores das minorias sociais como os negros “Black Power”,  e outras como “Gay Power” e “Women´s Lib”, inclusive músicos do rock in roll (PAES,1997,p.23).

Segundo o sociólogo Carlos Alberto M. Pereira, a Contracultura, ainda que sem contornos bem definidos dos “tradicionais movimentos organizados de contestação social”, conseguiu se afirmar como um movimento capaz de inaugurar um estilo “um modo de vida e uma cultura underground” que acabou por transcender os limites sócio-politicos dos EUA chegando em outros países (PEREIRA, 1986).

Os hippies foram os primeiros “drop outs”. Criaram um estilo de vida alternativo a partir de suas comunidades com costumes próprios. Eram favoráveis à paz, ao amor livre e à legalização da maconha. Seu principal lema era “flower power”, ou seja, poder da flor. Posteriormente surgiram outro tipo de “drop outs” – soldados ou reservistas, que não queriam participar da Guerra do Vietnã.

Luis Carlos Maciel definiu os hippies da seguinte maneira:

“O primeiro impulso do movimento hippie   foi, portanto, uma mistura de Jean-Jacques Rousseau, Wilhelm Reich e Thimothy Leary: acreditada na volta à natureza e na cura da neurose através dos alucinógenos. Descobriu-se, então, o chamado Flower Power”  o poder da flor, sobre o poder das armas, automóveis, televisores, máquinas de lavar roupas e outros projetos fabricados, na indústria moderna, pela mão do homem.”[vi]

Nos anos de 1967, no contexto estudantil universitário norte americano, surgem os “yippies” cujos líderes foram Jerrry Rubin e Abbie Hoffman. Eles se autodefiniam como sendo “revolucionários” e misturam a política da Nova Esquerda (New Left) com o estilo psicodélico dos hippies. Apesar de algumas semelhanças, os yippies assumiram uma posição mais contundente no campo da política, conforme análise de Luis Carlos Maciel, em suas palavras:

“Assim como os hippies sucederam os beatniks, os yippies sucederam agora os hippies. O nome deriva da sigla YIP, isto é, Youth Internacional da juventude”. Qual a diferença entre uns e outros? Os yippies parecem um pouco mais dispostos à ação no terreno da política tradicional. Como os hippies, acreditam que o negócio é fazer o amor, não a guerra, e são favoráveis à paz e à legalização da maconha.” vii]

O principal ponto em comum entre hippies e yippies foi o psicodelismo, que em teoria seria a experiência de expansão da consciência a partir do uso de drogas alucinógenas como a maconha e o LSD  [viii],  mas que na prática se tornou uma verdadeira  “febre” entre os jovens.

O psicodelismo surge a partir das experiências de Aldous Huxley e Alan Watts, em investigar a consciência com objetivo de recuperar o “valor de tradições culturais desprezadas”,  a partir do método de “cultivo sistemático de estados de consciência anormais” (ROSZAC, 1972, p. 163).

Posteriormente a partir da contribuição dos textos de Thimothy Leary, o psicodelismo torna-se um “rito sagrado de uma nova era”,  e que usar tóxicos “não é uma traquinada juvenil”. Ocorreu que a juventude assimilou essas informações de forma deturpada e o uso de drogas tornou-se um fim em si mesmo (PAES, 1997). Segundo análise da historiadora Maria Helena Simões Paes:

“[...] Tentar a vida comunitária, a volta à natureza, a busca de novas descobertas. É nessa busca que se explica o uso das drogas alucinógenas como um  meio de “expandir” a mente e alargar a consciência”, conforme explicitou Thimothy Leary, o conhecido papa do psicodelismo, aquele que foi o professor de Harvard e daí expulso pelas suas experiências como LSD. O misticismo oriental, fortemente difundido entre os hippies, também fazia parte dessa busca, pós era uma outra forma de apreender a realidade. Enfim, o empenho dos jovens era a busca do prazer e da felicidade, aqui e agora”.[ix]

A força do movimento de Contracultura se concentrou na juventude universitária, como os yippies  norte-americanos, surgiram os engagés [x] franceses e os SDS alemães (MACIEL, 1987, p.96). Essa juventude marca sua presença no final da década de 1960,  com dois grandes acontecimentos, o “Maio de 68” e o segundo festival de Woodstock.

O Maio de 68 foi uma grande manifestação popular que teve início Universidade de Paris – Nanterre, França, a partir de desentendimentos entre os estudantes e a instituição. O estopim da crise foi a proibição da presença masculina nos dormitórios femininos. O estudante Daniel Cohn-Bendit liderou o movimento que logo tomou as ruas e culminou com uma greve geral, a partir da adesão de outros segmentos da sociedade – operários, bancários e professores. Foi uma manifestação sem precedentes, mais de 13 mil jovens se confrontaram com a polícia nas ruas de Paris. Os estudantes, com seu lema “é proibido proibir”, tinham como principais reivindicações: igualitarismo, liberalismo e a liberação sexual.  São várias as interpretações sobre as causas da explosão desse movimento.

Segundo Ferry e Renaut[xi], autores do livro Pensamento 68, há pelo menos oito razões possíveis para o movimento de Maio de 68 [http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/1968.htm ], a saber:

Maio como complô [a esquerda se rebela contra o governo];

Maio 68 como crise da Universidade;

Maio como acesso de febre ou como revolta da juventude;

Maio como crise de civilização[crítica a sociedade de consumo];

Maio como conflito de classes[contra a tecnocracia],

Maio como conflito social de tipo tradicional [específico da França];

Maio como crise política [devido aos 10 anos de governo De Gaulle];

Maio como encadeamento de circunstâncias.

O outro acontecimento marcante daquela década foi um concerto de Rock and roll deWoodstock, realizado numa fazenda nas proximidades da cidade de Nova York,  EUA, em agosto de 1969 e que contou com um público de mais de 500.000 pessoas para as apresentações de : Janis Joplin, Joan Baez, Jimmy Hendrix  entre outros.

A Contracultura dos anos 60 pôs em xeque uma série de valores até então inquestionáveis ou o status quo. A partir do ideário contracultural, que buscou um novo rumo para a organização da vida individual e coletiva, surge uma nova forma de ver o mundo e seus valores constituídos, que influiu no rumo dos movimentos sociais desde então e propiciou avanços na política e no direito. São legados desse movimento as políticas de controle nuclear, a valorização e defesa dos direitos das minorias étnicas, mulheres e negros e, em especial, uma nova consciência e atitudes práticas na defesa do meio ambiente, o Ecologismo[xii].

Fim da primeira parte

[i] MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1996.[ii] O escritor norte-americano Jack Kerouac (1922-1969)  nasceu em Lowell, Massachusetts. Quando aluno da Universidade de Columbia, em Nova York, se tornou amigo de Neal Cassady, Allen Ginsberb , Gary Snyder e William S. Burroughs.

[iii] Os livros de Kerouac são, claramente, auto referenciados e refletem as experiências tanto do escritor quanto a de seus amigos beats. Em. Em On the road , publicado em 1957, as personagens Sal (Jack Kerouac) ao lado de seu amigo Dean (Neal Cassady), percorrem o país vivendo livremente suas aventuras. Em The Dharma Bums,  Ray Smith (Kerouac),  um aspirante a escritor, é levado por seus amigos de aventuras Ryder de Japhy (Gary Snyder), um jovem zen-budista, e Alvah Goldbook (Allen Ginsberg) à busca da iluminação.

[iv] ROSZAK, Theodore. A contracultura.Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1972, p.134

[v] PEÇANHA, Doris Lieth Nunes.Movimento Beat: abordagem literária, sócio-histórica e psicanalítica.Petrópolis, Vozes, 1988, p. 104.

[vi] MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60: porto Alegre, L&PM, 1987, p. 94

[vii] MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60: porto Alegre, L&PM, 1987, p. 89

[viii] Abreviatura de Lyserg-Saeure-Disethylamid , composto químico sitentetizado pelo Dr. Albert Hoffman nos laoratórios Sandoz, na Suíça.

[ix] PAES, Maria Helena Simões. A década de 60: São Paulo, Editora Ática, 1997, p. 23

[x] A palavra francesa tinha origem na teoria estética que melhor expressaba os nossos sentimentos:a existencialista, de Jan-paul Sartre, e seu conceito de engagement.

[xi] FERRY, Luc. RENAUT, Alain. Pensamento 68.São Paulo: Ensaio, 1988.

[xii] Ecologismo segundo definição de Herculano (1996, p. 92) “ um conjunto nem sempre homogênneo, de ideário – crenças e valores- e de atitudes práticas vivido por associações civis, por pessoas físicas e também por organismos estatais na defesa do meio ambiente e na busca da qualidade de vida humana em harmonia com a natureza” . IN CARVALHO, Isabel Cristina sw M. : A invenção ecológica:narrativas e trajetórias da educação ambiental no Brasil, Porto Alegre, UFRGS Editora, 2002, p. 17.

 

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    Edite Galote Carranza
    é mestre pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie em 2004; doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 2013 com a tese “Arquitetura Alternativa: 1956-1979”; foi diretora do escritório de arquitetura e editora G&C Arquitectônica Ltda, editora-chefe da revista eletrônica 5% arquitetura + arte ISSN 1808-1142. Publicações em revistas especializadas, livros Escalas de Representação em Arquitetura, Detalhes Construtivos de Arquitetura e O quartinho invisível: escovando a história da arquitetura paulista a contrapelo. foi Professora da graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo.
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