Praça XV de Novembro: Ressignificando artes, signos e narrativas no coração de Florianópolis
MILTON LUZ DA CONCEIÇÃO
LARISSA FERRAZ RIOS
Resumo:
Este artigo trata da busca de evidências entre perdas e permanências das identidades e das culturas populares no centro histórico da cidade de Florianópolis. Os centros históricos de nossas cidades contemporâneas se encontram esculpidos e tingidos sobre conflitos de interesse de mercado. Suas leituras e interpretações sob um ponto de vista diferente do “tradicional”, que conserva edifícios, mas não conserva gestos, que conserva cascas sem conservar práticas, é um exercício que se torna cada vez mais complexo. Todavia, não seriam exatamente as práticas sociais aquelas que definem e reforçam os laços identitários, que significam o moldado e o construído? Sob formato de pesquisa qualitativa, parte de uma apropriação metodológica específica de se olhar para o seu patrimônio imaterial: a leitura de signos narrativos artísticos presentes na própria Praça XV.
Foi na pavimentação de suas calçadas que, no ano de 1965, o consagrado artista Hassis registrou através da técnica de petit-pavé as principais práticas de sociabilidade e manifestações simbólicas da cidade e de sua época através de quarenta e nove painéis artísticos desenhados em mosaico português, tombados em 2014 como patrimônio histórico e artístico da cidade. Os desenhos de Hassis podem ser agrupados de acordo com diferentes eixos temáticos, sendo as protagonistas neste estudo figuras relacionadas a brincadeiras tradicionais da ilha, festas populares, folguedos e figuras relacionadas ao cotidiano. Este trabalho permitiu que se revisitasse o sentido destes signos. Aliado a uma revisão histórica e a uma revisão bibliográfica crítica, a pesquisa reforça o caráter identitário desta espacialidade, que carrega significados fundamentais na consolidação do patrimônio do centro histórico da cidade de Florianópolis.
Palavras-chave: Identidade. Sociabilidades. Memória urbana.
Introdução
A cidade de Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, é popularmente conhecida pela alcunha de “Ilha da Magia”. Este título lhe foi atribuído durante seu processo de modernização, “num apelo que procurava realçar prioritariamente suas belezas naturais, a qualidade de vida e o lazer, foi uma forte alavanca imagética para projetá-la nacional e internacionalmente” (CASTELLS, 2014, p. 175). Claro, esta alcunha não poderia estar desalinhada das histórias fantásticas, míticas, folclóricas e religiosas que permearam e permeiam até hoje as entrelinhas das narrativas da cidade.
Não é difícil de imaginar a imensidão da bagagem cultural associada às lendas e histórias da memória e do imaginário de um povoado nascido em uma ilha, isolado então do resto do mundo, com surgimento datado em torno do ano de 1680 – a Vila da Nossa Senhora do Desterro – crescendo, portanto, sobre si mesma, sobre seu próprio universo. A colonização do Desterro nasceu sob acesso restrito por barcos, e a primeira ponte de ligação com a porção continental, a Ponte Hercílio Luz, teve sua inauguração apenas cerca de dois séculos depois, no ano de 1926.
No coração do Desterro nasce a Praça XV de Novembro (fig. 1), ou melhor, o Largo da Matriz ou Largo do Palácio, como era chamada anteriormente. A praça, desde seu nascimento, consagra-se como centro de sociabilidades para as sociedades das diferentes épocas que nela se estabeleceram, acompanhando o desenvolvimento e os diferentes momentos históricos da própria cidade, sofrendo pelos mesmos processos que o centro histórico no decorrer de diversos períodos de intervenções, modernizações e urbanizações, compartilhando assim com a cidade cicatrizes, vestígios das tessituras de tempos de outrora.
Este artigo surge como parte de uma pesquisa que busca reinterpretar os significados e as narrativas que estas sociabilidades, enquanto imaterialidades estampadas nas cicatrizes visíveis do lugar, nos contam sobre estes outros tempos. Trata-se dos signos materializados e eternizados na Praça XV de Novembro e o que estes representam: as práticas e os costumes destes outros tempos, sua memória e sua identidade.
Sob este viés, nada mais viável para compreender estas ressonâncias do que revisitar alguns signos que foram criados exatamente sob esta perspectiva. No ano de 1965, o consagrado artista Hassis registrou, no piso da Praça XV de Novembro, através da técnica de petit-pavé, as principais práticas de sociabilidade e manifestações simbólicas da cidade e de sua época através de quarenta e nove painéis artísticos desenhados em um grande mosaico português que é, atualmente, tombado como patrimônio histórico e artístico da cidade.
A pesquisa se estruturou sob duas etapas: primeiramente, houve o mapeamento destes signos através de caminhadas pelo local, onde o método escolhido foi a Etnografia de Rua, proposta por Rocha e Eckert (2003). Consiste em uma exploração do espaço urbano a partir de caminhadas sem destino fixo, subsidiadas pela figura do flâneur, o personagem benjaminiano. A câmera fotográfica passa a fazer parte do olhar do pesquisador e da coleta de dados, definindo-o como um método de “câmera na mão” (ECKERT & ROCHA, 2003, p. 2). A segunda etapa foi a análise destes signos a partir do processo de subjetivação pelos próprios pesquisadores. Revisitar o sentido destes signos, conjuntamente a uma revisão histórica e crítica, permitiu o reforço dos enunciados que configuram a identidade da praça enquanto lugar simbólico no tocante à sua paisagem cultural, reforçando também o caráter identitário desta espacialidade, que carrega significados fundamentais na consolidação do patrimônio do centro histórico da cidade de Florianópolis.
Identidade, memória e paisagem
O espaço urbano é um recurso valioso. Nele se estabelecem relações, interações, sociabilidades, estranhamentos, práticas sociais entre os indivíduos que por ele circulam e que nele vivem. Cada indivíduo, cada concorrente deste espaço, busca por uma certa porção deste que possa ser considerado por si provisoriamente um lugar próprio. Esta busca por um lugar próprio nada mais é do que um indício sobre as relações identitárias que tecemos dia após dia com o espaço que nos cerca. Yi-Fu Tuan (1983), por exemplo, afirma que é apenas quando um espaço se torna inteiramente familiar para nós, que ele se transforma em um lugar.
Seria então a relação identitária, a identificação do espaço que nos torna próprio, um dos três pilares fundamentais para a tomada deste espaço sob a definição do que o antropólogo francês Marc Augé (1994) denomina de “lugar antropológico”. Este lugar antropológico não se define a partir de extensões, de distâncias ou recortes temporais, mas sim fundamenta-se sob a diretriz de um lugar simbólico. Mas como se dão então estas relações entre o simbólico e o lugar? É necessário que ocorra uma mediação entre os símbolos do lugar, e do sentimento de pertencimento.
Scarduelli e Gonçalves (2020), no tocante ao tema, expõem que estes sentimentos de identidade e de pertencimento são frutos da memória que se constrói das experiências e das vivências sociais do indivíduo. Para as autoras, esta memória caracteriza-se como “um elemento social, sendo desenvolvida por meio das pessoas, lugares e dos acontecimentos. Mesmo a memória sendo individual e particular de cada um, sua formação é concretizada no meio coletivo” (SCARDUELLI & GONÇALVES, 2020, p. 6)
Os autores Bielschowsky e Pimenta (2014, p. 178) compartilham desta perspectiva e, sob o mesmo viés, definem o que neste texto chamamos de memória urbana: “é o estoque de lembranças que estão eternizadas na paisagem ou nos registros de um determinado lugar”. Para os autores, esta memória se articula a partir das memórias coletivas, e somente são possíveis de adquirirem valor simbólico no momento que remetem a um certo cotidiano vivido por um determinado grupo em um determinado lugar.
Dentro desta lógica, é possível apreender que é através da memória que nós, sujeitos, significamos e ressignificamos, simultaneamente, nossa identidade social, sendo a memória do lugar um fator fundamental para conceber nossa identidade. Mas não é somente através das relações sociais que se concretiza em nossa memória a lembrança da imagem de um lugar. Não se podem ignorar desta memória suas composições arquitetônicas, seus elementos físicos, suas cores, nuances, marcas e tessituras apreensíveis. É como se a nossa memória sobre um determinado lugar apenas fosse acessível sob a dialética produzida entre componentes materiais e imateriais de sua paisagem.
A paisagem que aqui se introduz é aquela que pode ser definida no tocante à paisagem cultural. Para Claval (2002), proveniente das transformações produzidas pelas sociedades sobre os meios naturais onde estes se instalam, “a paisagem humanizada (cultural) toma diversas formas que refletem as escolhas e os meios de diferentes culturas”. Mais do que a clássica definição de paisagem enquanto uma simples extensão de um território abarcado pela vista, a paisagem é constituída por uma relação dialética entre cultura e natureza.
Ou seja, a paisagem é sim estruturada sobre um determinado recorte espacial, porém é um sistema vivo que, conforme Cantero (2004), é repleto de representações, imagens e sentidos. Bielschowsky e Pimenta (2014, p. 179) comentam que “a cultura estampada na natureza socializada é parte do registro de um determinado tempo, e a outra parte desse registro encontra-se na memória coletiva social”. Segundo os autores, é ainda mantendo vivos os signos e as atividades de um lugar, mesmo que se sujeitando à ação do tempo, que a dinâmica da vida do local pode permanecer viva.
Trata-se, portanto, de uma relação dialética entre paisagem e memória. Costa (2008, p. 150) defende que a relação entre estas categorias se fundamenta sob a perspectiva da geografia da percepção, na “existência de um conjunto de signos que estruturam a paisagem segundo o próprio sujeito e refletindo uma composição mental resultante de uma seleção plena de subjetividade a partir da informação emitida por seu entorno”. Ou seja, os signos da paisagem e seu complexo, sua rede de significados, funcionam como agentes mediadores das experiências cognitivas que mantemos com o lugar, e que converte, portanto, este lugar e sua respectiva paisagem em “suportes privilegiados do processo de simbolização, da conversão em símbolos dos elementos concretos presentes no cotidiano” (COSTA, p. 151).
Scarduelli e Gonçalves (2020) afirmam ainda que as identidades urbanas são conformadas pelos elementos que buscam representar, dando assim sentido à sociedade que se estrutura, em cada época, em um determinado lugar. Sendo assim, “a preservação de sua identidade implica na preservação da cultura histórica de um povo, característica importante para preservação de valores e signos de um espaço” (SCARDUELLI & GONÇALVES, 2020, p. 8). Neste contexto, percorrer por narrativas históricas predispõe uma intercepção no universo da identidade e da memória coletiva que situa e fundamenta o lugar. Mesmo que beirando um paradoxo, é possível dizer que as imaterialidades destes lugares se encontram materializadas dentro do imaginário urbano e é neste paradoxo, neste imaginário que iremos submergir.
A Praça XV de Novembro
A praça XV de Novembro (fig. 2) acompanhou os diferentes momentos históricos da cidade de Florianópolis desde seu nascimento. Cada um destes momentos históricos condicionou e, simultaneamente, foi reflexo do condicionamento dos processos de transformação do centro da cidade, os quais deixaram marcas, cicatrizes em suas tessituras que podem ser percebidas não apenas em seu patrimônio edificado, material, mas também em seu patrimônio imaterial, afinal, muitas das práticas de sociabilidade de seus usuários transpassam e sobrevivem à passagem do tempo, constituindo grande parte de sua memória coletiva.
Concebida primariamente como um espaço dedicado às atividades governamentais, militares e portuárias do domínio português, a Praça XV funcionou por muitos anos como centro administrativo, comercial e econômico da cidade. De acordo com Coradini (1992), no início do século XIX, a elite local resolveu pelo seu cercamento, período em que a praça ficou conhecida pela alcunha de Jardim Oliveira Belo, restrito então as camadas de maior status e poder aquisitivo. Anos depois, a praça foi aberta novamente ao público.
Entre as décadas de 30 e 70 do século XX, a Praça XV acompanhou o período de modernização e ebulição social da cidade, que remodelou grande parte da região central da cidade. Com a modernização, a Ilha da Magia ingressou em uma crescente econômica que via no turismo sua principal estratégia. Os turistas, consumidores da magia da ilha, que em um primeiro momento tinham olhos e interesses voltados apenas às praias e belezas naturais, foram sendo instigados pelos veículos de divulgação pouco a pouco a conhecerem o centro histórico. Um integrante importante do cenário da Praça XV nesta época era, na porção sul da praça, o trapiche onde foi construído o mais popular bar da época: o Miramar.
Nos anos seguintes, foram realizadas diversas obras na região do centro histórico da cidade visando à sua abertura sua expansão. Como o centro histórico já se encontrava consolidado, não havendo a possibilidade da expansão de sua malha viária, a solução encontrada pelo Estado para o desenvolvimento da cidade foi a criação de aterros na região central (CORRÊA, 2005). A Praça XV, que até a construção do aterro da Baía Sul era tocada pelo mar, teve grande parte de sua paisagem modificada, afinal, tanto a proximidade com o mar e o trapiche do Miramar, que funcionavam então como pano de fundo do cenário da praça, eram componentes essenciais dos laços identitários de seus usuários com o lugar, de sua memória coletiva.
Qualquer curioso que visite a Praça XV nos dias de hoje (fig. 3) acaba por se deparar com um cenário heterogêneo, uma grande mescla urbana. Encontrará o turista fotografando em frente à Figueira centenária, principal assinatura-monumento da praça; encontrará o trabalhador do centro em sua pausa para almoço; os senhores e suas histórias junto às mesas de dominó; os transeuntes sempre com pressa; o homem que vende; o estrangeiro que vende sua arte no Memorial do Miramar, ao sul da praça; o homem que pede; o homem que dorme; o homem que descansa; o homem da boemia; Enfim, um espaço misto, passível de inúmeras interpretações e significações.
Hassis na Praça XV
Conhecedor da história da cidade, vivente intenso de seu tempo, integrante do sistema das práticas sociais do centro e componente também da efervescência de sua própria obra, Hassis (1921 – 2001) foi um emblemático artista, um importante ator social da representação dos processos e das mudanças sofridas pela capital catarinense ao longo dos anos. No ano de 1965 foi convidado para a elaboração daquela que seria a obra marco de um novo processo de urbanização das praças do centro de Florianópolis.
Hassis foi um consagrado artista curitibano que, mudando-se para Florianópolis aos dois anos de idade, cresceu e viveu toda a sua vida em sintonia com o desenvolvimento da cidade. Segundo Pedroso (2010), Hassis percorreu por entre diferentes estilos e diferentes técnicas artísticas durante sua trajetória como artista. Seu acervo, composto por inúmeras fotografias, cartazes, recortes, catálogos, pinturas em tela, livros, álbuns, filmes, entre muitos outros conteúdos, acompanharam o “panorama cultural de sua época e as transformações urbanas de Florianópolis (...) sua fortuna crítica acumula olhares e leituras substanciais que potencializam a história da arte de Santa Catarina” (PEDROSO, 2010, p. 6).
Hassis estava ciente do valor do que estava construindo em suas obras e do alcance – material e imaterial – de seu patrimônio. Documentando especialmente o cotidiano de Florianópolis e o folclore ilhéu, Hassis prezava pelas conotações sociais de seus trabalhos, nos quais
registra o tempo, o espaço, pensa o local, a chuva, o vento, assume uma preocupação com o passado. Mistura a própria memória com a memória e o cotidiano da cidade (...) um artista de grandes epopeias, extremamente comprometido com o drama universal. A sua linguagem (...) é a dos profetas, a sua sinceridade dos puros, seu mundo mítico é a Ilha (PEDROSO, 2010, p. 12).
Suas obras transpassam – perpassam – sua vida, seu tempo e seu espaço/lugar, pois, enquanto a vida se esvai, a obra sobrevive. O valor patrimonial deste artista não se refere apenas ao físico, à materialidade, mas também às imaterialidades fundidas nas memórias de suas obras, em seu acervo simbólico, nas sensibilidades e persistências de suas apreensões e registros. Ou seja, sua obra “excede o vivido e o registro bibliográfico para ampliar outros sentidos” (PEDROSO, 2010, p. 28).
No piso da Praça XV de Novembro, o artista compôs um mosaico em pedras portuguesas em estilo petit-pavé (fig. 4) inspirado nos costumes ilhéus, em suas práticas sociais, rituais e simbólicas cotidianas. O mosaico compõe-se de cinco principais grupos de desenhos: a série Atividades Cotidianas, com desenhos símbolos das atividades do dia a dia do centro; série Artesanato Arte do Trançado; uma série sobre atividades do folclore ilhéu , chamada Folguedos; uma quarta série sobre brincadeiras infantis, chamada Jogos e Brinquedos; e uma última série chamada Diversos (Instituto de Patrimônio Urbano de Florianópolis – IPUF, 2002).
Na virada do século, a obra necessitou ser restaurada. Hassis chegou a participar em um primeiro momento, porém faleceu antes de sua finalização. Os desenhos, após a restauração, em 2002, foram inventariados e publicados (fig. 5) pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) em um livro chamado Hassis na praça: Praça XV de Novembro – Levantamento e Recuperação dos desenhos. A obra de Hassis foi tombada pelo município em 2012.
O mosaico é, até os dias de hoje, palco das diversas relações de sociabilidade que ocorrem no centro urbano da cidade. Seus desenhos são componentes fundamentais da paisagem urbana e cutural da praça, funcionando como tessitura de interlocução entre o passado e o presente. São símbolos de resistência da sociedade no tempo, de marcas e vestígios de costumes de outrora que hoje fundamentam o imaginário urbano do coração do centro histórico e a salvaguarda de sua memória. Nas palavras de Pedroso (2010, p. 31),
As tessituras de Hassis situam-se no “onteamanhã”, estão vivas no piso da Praça XV de Novembro, lugar de fundação e palco dos principais movimentos históricos da cidade. (...) O conjunto de 49 desenhos registra jogos de infancia, os folguedos, as atividades cotidianas, o artesanato e remete a construção de um pequeno mundo onde o bonito é ser feliz. Nessa especie de arcádia ele reconhece e valoriza pessoas e uma paisagem que está desaparecendo. Uma atenta leitura sobre essa produção revela, alem das derivas e suspensões, como o artista pensa a questão do tempo e do espaça no lugar em que vive, documenta, pinta, vasculha a existência humana.
Artes, signos e narrativas
O mosaico de Hassis e seus desenhos em petit-pavé foram feitos sem nenhum esboço (PEDROSO, 2012). A medida que as pedras portuguesas eram assentadas, o artista compunha suas figuras desenhando diretamente os contornos sobre a terra. Sendo assim, os signos narrativos do artista se mesclam entre si sobre os caminhos da praça, compondo verdadeiros cenários imaginários. É muito interessante pensar em como sua obra transcorre as camadas temporais: muitas das atividades retratadas permanecem no leque de costumes de nossa sociedade nos dias de hoje, continuam sendo parte de nossas práticas sociais; enquanto outras reforçam o caráter da volatilidade da vida, as imprecisões do tempo e das nossas ações.
Tomando como exemplo a série das atividades cotidianas, muito do que se apresenta são práticas decorrentes das relações de trabalho e de sustento, seja este formal ou informal. Temos por exemplo o desenho do pescador e várias representaçoes de barcos, da rede, da pesca e do mar, alguns dos principais símbolos da cultura açoriana que, naquela época, eram componentes muito presentes e marcantes no lugar, afinal durante a maior parte da história da praça ela não havia sido afastada do mar, o que somente alguns anos depois com o aterro da Baía Sul. Sendo assim, o pano de fundo do mar e as atividades da pesca, os trapiches, os passeios de barco, são vestígios de perda, no sentido dos laços identitários das pessoas daquela época com o lugar. Uma outra figura emblemática, tradicional do cenário urbano da época e da memória urbana dos usuários da praça era a figura do fotógrafo e seu lambe-lambe.
O lambe-lambe era assim chamado pois a fotografia, após o momento do registro, era revelada e copiada dentro do mesmo caixote que sustentava a lente. O fotógrafo (fig. 6) era uma figura que estava sempre presente na praça, dia após dia, e foi eternizado pelo artista próximo à Figueira. Da mesma forma que o fotógrafo, tínhamos a presença do jornaleiro, outra figura ilustrada no mosaico, que distribuía os jornais impressos para os transeuntes lerem sob as sombras da Figueira.
Estes dois personagens representam, junto do pombeiro, da lavadeira e dos vendedores de torradinho, uma série de personagens que hoje existem somente na memória identitária da praça, representando as cicatrizes do tempo. Todavia, refletir sobre estas perdas abre espaço para uma possível discussão: mesmo que as figuras, os personagens não existam mais, especificamente, não estariam essas práticas ressignificadas no nosso dia a dia? Afinal, a prática da fotografia, o registro do instante, a leitura digital, o papel que vira tela, não são imaterialidades resistentes ainda nos dias de hoje enquanto permanências ressignificadas?
A categoria do Artesanato e Arte do trançado é um outro exemplo em que a prática não se dilui, não se esfumaça no tempo, mas sim se transforma constantemente, eternizando-se. Se antes tínhamos a presença das delicadas rendas de bilro, as técnicas das artes indígenas do trançado, as redes dos pescadores – todos representados dentro do mosaico – hoje temos as pulseiras, os pingentes, as pedras, os anéis, a corda, o arame, artes artesanais associadas a reterritorializações constantes, sobre a delimitação de um pano, de uma toalha no chão: apropriações constante do espaço.
Representando os Jogos e as Brincadeiras, o artista reproduziu aquelas atividades das crianças ao ar livre, como o peão, o pular corda (fig. 7), empinar pipa, o balanço na árvore. São brincadeiras fáceis, felizes e simples, brincadeiras antigas que se encontram nas memórias e narrativas dos nossos pais e que, mesmo eternizadas pelo imaginário e pela memória da infância, encontram alguns contratempos nos dias de hoje, como o excesso da individualidade das crianças, a introspecção, a tecnologia, e até mesmo a segurança de estarem ao ar livre.
Na categoria dos Folguedos, das festas populares de espírito lúdico, temos o exemplo do folclore mais tradicional de Florianópolis: o boi-de-mamão (fig. 8). Em uma mescla de música, dança, instrumentos, histórias, letras, cores e fantasias, o festejo se realiza firmemente até os dias atuais. Hassis representa não apenas o boi-de-mamão, mas outros de seus personagens como a Maricota (fig. 9) e o Curandeiro. As tradições carnavalescas também foram ilustradas, afinal a praça foi palco do tradicional carnaval de rua de Florianópolis por muitos anos, sendo atualmente seu público tão grande que a festa foi transferida para um espaço mais amplo.
Pensar nessas tradições, assim como nos eventos rituais e nas práticas cerimonias é um convite ao ingresso em um espaço – transtemporal – mítico, de persistências imateriais, como define Tuan (1983, p. 97), espaços que “persistem porque, tanto para os indivíduos como para os grupos, sempre haverá áreas do imprecisamente conhecido e do desconhecido”. Ilustrar tais práticas em uma obra como a de Hassis permite que estes eventos – momentâneas cotrações e modificações de espaço, tempo e paisagem – sejam simbolizados e convidados a permanecerem vivos.
É algo que escapa das transformações históricas, transitando livremente entre tempos, reafirmando o desejo. A procissão Corpos Christi é um exemplo destes eventos que possibilitam que se submerja no cenário do imaginário através de composições imagéticas que, imersas em articulações e referências culturais de outrora, são capazes de evocar vivências, valores e sentidos, ressignificando-os. Vaz (1990, p. 60) comenta sobre isto em estudo sobre o espaço público do ritual no centro de Florianópolis:
Há momentos, pois, em que os espaços públicos deixam de fazer parte dos instrumentos de produção da sociedade, deixam por alguns instantes suas significações normais e cotidianas. São momentos fugazes em que, transformando-se em locais de comemoração, servem a objetivos mais altos e abstratos da sociedade. São os dias consagrados, as celebrações religiosas, cívicas e festivas que ocorrem anualmente. (...) Estes rituais coletivos e públicos são a reafirmação de valores reconhecidos pela sociedade como "eternos", ritualizados pelas instituições sociais e transformados em tradição. São momentos em que a sociedade coletivamente expressa seu culto à memória e o desejo de preservação de alguns valores.
Há ainda uma quinta categoria nos desenhos de Hassis, que durante o inventário foi denominada de Diversos. Esta categoria corresponde a elementos variáveis da paisagem – o sol, a chuva, o dia, a noite, os raios – ou seja, referenciam as variáveis naturais do dia a dia do lugar, segmentos constituintes de sua paisagem. Hassis ainda ilustrou algumas pessoas aleatórias caminhando, passeando ao redor da praça, e também desenhou alguns dos responsáveis pelo calçamento em petit-pavé.
Considerações finais
Hassis construiu em sua obra na Praça XV de Novembro um conjunto de figuras que sintetizam as sociabilidades de toda uma época, representando o universo coletivo, o imaginário, a identidade e a memória de uma geração, cujos costumes e cujas práticas de sociabilidade se eternizaram no mosaico. É muito interessante pensar que hoje todas as atividades que acontecem no espaço da praça estão associadas, de uma forma ou de outra, à bagagem proveniente desta construção simbólica, afinal o mosaico se encontra presente em praticamente toda a extensão da Praça XV, tornando-se componentes inquestionáveis de sua paisagem urbana.
É a dialética entre perda e permanência, ou seja, a confluência entre passado e presente o que reforça o valor patrimonial da obra, afinal, é fato que as atividades retratadas refletiam toda uma postura, costumes e crenças da sociedade de outrora. Perdas e permanências estas que, hoje, se apresentam como vestígios, como signos e cicatrizes a serem revisitadas e ressignificadas.
Neste emaranhado de vestígios, foi possível encontrar algumas permanências identitárias da cultura popular de um determinado período histórico da capital catarinense. Este tipo de estudo, que percorre por – entre – narrativas históricas jé eternizadas em símbolos e signos predispõe infinitas análises e histórias ainda a serem contadas e descobertas, perspectivas polissêmicas e que são fundamentais para a valorização e significação patrimonial do centro hustórico da cidade.
Sendo assim, a obra estampa signos de resistência da memória urbana e da história, do patrimônio material e imaterial da cidade de Florianópolis. O artista produziu não apenas arte enquanto matéria, mas criou um portal aberto às revisitações diárias pelos praticantes do espaço da praça. Hassis construiu, segundo Pedroso (2012, p. 31), uma utopia, um éden no coração de sua cidade carregado de significados: “mais do que um guardião da memória, ao criar um sistema histórico novo em diversos sentidos, Hassis atravessa gerações e alcança uma singular completude, a de superar o caráter irracional de sua mera existência para ocupar lugar de destaque na história da arte de Santa Catarina”.
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Milton Luz da Conceição
Doutor em Geografia Humana pela Universidad Computense de Madrid (2004) e Pós Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidad d’ Salamanca (2015). Atualmente é professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina do curso de Arquitetura e Urbanismo e professor permanente do Programa Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósArq).
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Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9742280118122807
Larissa Ferraz Rios
Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Santa Maria (2017).
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósArq) na Universidade Federal de Santa Catarina.
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Link para currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9750454422852906
Como citar:
CONCEIÇÃO, Milton Luz da. RIOS, Larissa Ferraz. Praça XV de Novembro: Ressignificando artes, signos e narrativas no coração de Florianópolis. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 16, v. 01, n.21, e166, p. 1-20, jan./jun./2021. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/uncategorised/praca-xv-de-novembro-ressignificando-artes-signos-e-narrativas-no-coracao-de-florianopolis
Submetido em: 2020-10-27
Aprovado em: 2021-05-15
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