Documentação e análise: Casa Bermúdez, 1952-58, Bogotá, Colômbia

Categoria: Ciências sociais aplicadas: Arquitetura Imprimir Email

 

SILVIA LOPES CARNEIRO LEÃO

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo apresentar e analisar material documental sobre importante obra latino-americana moderna: a casa do arquiteto Guillermo Bermúdez (1924-1995), projetada e construída entre 1952-60, em Bogotá, Colômbia.

A obra faz parte de uma amostra de casas modernas exemplares do período 1915-1960, estudadas na tese de doutorado da autora, intitulada “As fachadas da casa moderna”. A Casa Bermúdez foi a única representante colombiana da amostra, que incluía residências de Europa, Estados Unidos e América Latina. O material analisado foi obtido por intermédio do arquiteto Daniel Bermúdez, filho do autor.

 A obra de Guillermo Bermúdez destaca-se pela qualidade dos projetos habitacionais, entre eles sua própria residência, premiada na Primeira Bienal de Arquitetura da Colômbia em 1962. A casa foi construída em três etapas: na primeira, constava de volume de dois pavimentos com cobertura em abóbadas e marquise borboleta frontal, em contato com a rua e com o pátio aos fundos; na segunda, o lote é acrescido de uma faixa lateral e a casa sofre o acréscimo de uma ala longitudinal de um pavimento; a terceira etapa consiste no acréscimo de um volume longitudinal de serviços a nordeste, com um pavimento de altura. 

Pretende-se, a partir do rico material documental disponível, analisar as diversas etapas de construção do ponto de vista arquitetônico, considerando evoluções de programa, volume, relações com o lugar e conexões com algumas das principais manifestações arquitetônicas do período moderno.

Palavras-chave: 1. Casa unifamiliar moderna; 2. Arquiteto Guillermo Bermúdez; 3. Bogotá-Colômbia.

 Abstract

The present work aims at presenting and analyzing the documentary material about an important Latin-American modern piece: the house of Guillermo Bermúdez (1924-1995), designed and built between 1952-60 in Bogota, Colombia.

The construction is part of a sample of houses that exemplify the period of 1915-1960, studied by the author in her thesis called ‘The façades of the modern house’. The Casa Bermúdez was the only Colombian representative in the sample, which included houses from Europe, United States and Latin America. The analyzed material was obtained via the architect’s son, Daniel Bermúdez.

Guillermo Bermúdez’s work stands out due to the quality of the housing projects, among them his own house, awarded at the First Architecture Biennial of Colombia in 1962. The house was built in three phases: the first had two floors with domed ceilings and a frontal butterfly marquee, in contact with the street and the backyard; the second phase had the addition of a side strip to the lot and the house gained a longitudinal wing with one floor; the third phase was the addition of a service, longitudinal volume to the northeast of the building, with a single floor.

The goal is to analyze the rich documental material available, analyzing the several phases of construction from the architectural point of view, considering the program’s evolution, the volume, and the relationship to the place and to the main architectural manifestations of the time.

Key words 1. Modern single-family house; 2. Architect Guillermo Bermúdez; 3. Bogota-Colombia.

Resumen

El presente trabajo tiene por objetivo presentar y analizar material documental sobre importante obra latinoamericana moderna: la casa del arquitecto Guillermo Bermúdez (1924-1995), proyectada y construida entre 1952-60, en Bogotá, Colombia.

El trabajo forma parte de una muestra de casas modernas ejemplares del período de 1915 a 1960, estudiadas en la tesis de doctorado de la autora, titulada "Las fachadas de la casa moderna." La Casa Bermúdez fue la única representante colombiana de la muestra que incluía residencias de Europa, EE.UU. y América Latina. Se obtuvo el material analizado a través del arquitecto Daniel Bermúdez, el hijo del autor.

La obra de Guillermo Bermúdez se destaca por la calidad de los proyectos de vivienda, incluyendo a su propia residencia, premiada en la Primera Bienal de Arquitectura de Colombia en 1962. La casa fue construida en tres etapas: la primera consistía en volumen de dos plantas con cubierta en bóvedas y marquesina frontal con techo mariposa en contacto con la calle y con el patio al fondo; en la segunda, se añade al lote una banda lateral y la casa sufre el aumento de un ala longitudinal de un pavimento; la tercera etapa consiste en el aumento de un volumen longitudinal de servicios al noreste, con un pavimento de altura.

Se pretende, a partir del rico material documental disponible, analizar las diversas etapas de construcción desde el punto de vista arquitectónico, considerando evoluciones de programa, volumen, relaciones con el lugar y conexiones con algunas de las principales manifestaciones arquitectónicas del período moderno.

Palavras clave: 1.Casa unifamiliar moderna; 2.Arquitecto Guillermo Bermúdez; 3.Bogotá-Colombia.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma relevante obra da Arquitetura Moderna latino-americana, pouco conhecida no Brasil. Trata-se da Casa Bermúdez, situada em Bogotá, Colômbia, projetada pelo arquiteto Guillermo Bermúdez para sua família entre 1952 e 1960. Premiada na Primeira Bienal de Arquitetura da Colômbia em 1962, a casa é referenciada em todas as principais publicações sobre arquitetura colombiana dos anos 50.

A residência fez parte de uma amostra de 89 casas unifamiliares modernas exemplares selecionadas para a tese de doutorado “As fachadas da Casa Moderna”, defendida por esta autora em 2011. Todos os exemplos da amostra foram projetados entre 1915 e 1960 na Europa, Estados Unidos, América Hispânica ou Brasil, e a Casa Bermúdez foi a única representante colombiana selecionada.

Em razão da escassez de material disponível, foi feito contato com o também arquiteto Daniel Bermúdez, filho do autor, que gentilmente cedeu rico material documental sobre a casa onde havia morado. Inicialmente um prisma de base retangular, a residência sofreu duas ampliações sucessivas.

O trabalho foi estruturado em três partes principais. Inicialmente apresenta-se o arquiteto Guillermo Bermúdez, representante da arquitetura moderna colombiana dos anos 30 a 60; a seguir, faz-se uma análise da casa propriamente dita, considerando suas três etapas de construção e as alterações ocorridas em relação a lote, programa, volume e grau de privacidade; ao final, a obra é confrontada com algumas das principais congêneres da arquitetura moderna internacional.

Sobre Guillermo Bermúdez e a arquitetura colombiana

Guillermo Bermúdez Umaña nasceu em 1924 em Soacha, cidade próxima a Bogotá. Começou sua formação em arquitetura na PUC do Chile, mas cumpriu os dois últimos anos do curso na Universidade Nacional da Colômbia (UNC), graduando-se em 1948. Estudante, enfrenta-se, por um lado, com a tradição Beaux-Arts e a arquitetura clássica e, por outro, com a arquitetura moderna que se disseminava pela América Latina no período. Em relação às propostas de vanguarda, a PUC do Chile apoiava-se principalmente no ideário da Bauhaus e a UNC no racionalismo corbusiano.

Logo depois de formado, Bermúdez participa do grupo Domus, em parceria com os arquitetos Francisco Pizano e Hernán Vieco, com quem realiza suas primeiras obras. É uma fase de experimentações, que tem na casa de Pizano (Bogotá, 1950), com cobertura em abóbadas catalãs, sua principal realização. Em 1950, inicia carreira solo e destaca-se pela qualidade dos projetos habitacionais, realizados principalmente na cidade de Bogotá. Trabalhou, também, para o Ministério de Obras Públicas da Colômbia e foi professor da UNC.

No âmbito da arquitetura doméstica, o arquiteto destaca-se pelo cuidadoso detalhamento, pela importância dada aos jardins e à relação entre interior e exterior, bem como pela ideia de vincular o habitar moderno internacional ao contexto particular colombiano.

Nos anos de 1930, o panorama da arquitetura colombiana era contraditório: surgem as primeiras obras inspiradas no racionalismo corbusiano contemporaneamente a ecletismos historicistas. A arquitetura colonial do país serve de referência aos arquitetos, aliada a outras influências historicistas.

Os anos 40 foram fecundos para o desenvolvimento da arquitetura na Colômbia. O país entra numa etapa de forte industrialização, a população cresce de forma considerável e na Faculdade de Arquitetura da UNC cria-se uma equipe de professores e alunos críticos da arquitetura que era feita até então. Surgem as primeiras gerações de arquitetos com formação acadêmica, e, em 1946, é fundada a Revista Proa, que permite a divulgação da arquitetura moderna colombiana no país e na América do Sul. Na edição de número 67, de janeiro de 1953, é publicada a Casa Bermúdez.

Nos anos 50, Bogotá é uma cidade economicamente pujante, onde se consolida uma sociedade burguesa. Surgem novas universidades e afirma-se a segunda geração de arquitetos bogotanos, empenhada em difundir os postulados da arquitetura moderna. Entre eles está Guillermo Bermúdez, que participa de vários projetos de habitação multifamiliar vinculados ao Banco Central Hipotecário. O mais destacado foi o Conjunto Residencial El Polo, no norte da capital, projetado em conjunto com o renomado arquiteto colombiano Rogelio Salmona.

Nos anos 60, são realizadas as primeiras Bienais de Arquitetura da Colômbia. Os primeiros prêmios em arquitetura doméstica das duas primeiras bienais foram concedidos a Bermúdez: na 1ª Bienal, em 1962, pela Casa Bermúdez; na 2ª Bienal, em 1964, pela Casa Bravo (Bogotá, 1961).

Realizador de uma obra prolífica e construída com esmero, promotor da arquitetura moderna em seu país, Guillermo Bermúdez morre em 1995 em Bogotá.

Sobre a Casa Bermúdez

Em 1952, já com escritório próprio, Guillermo Bermúdez dá início ao projeto de sua residência. A família era constituída por ele, pela esposa Graciela Samper Bermúdez, também arquiteta, e dois filhos (fig. 1). O lote original situava-se no norte de Bogotá, bairro El Retiro, sobre a Carrera 13, entre Calles 85 e 86. Com dimensões restritas, tinha frente de 10m e laterais de 27,19m do lado sudoeste e 27,37m do lado nordeste, ou seja, geometria aproximadamente retangular com profundidade equivalente a quase o triplo da largura.

A casa é construída em três etapas, evoluindo de acordo com a ampliação do lote, com as novas necessidades da família e com o rápido crescimento da cidade. A primeira etapa, de 1952, sofre influência da Casa Pizano (1950), especialmente pelo uso das abóbadas de cobertura, dos meios níveis internos e da escada como elemento articulador entre áreas social e íntima. Diferenciava-se das residências vizinhas pela limpeza de linhas, pela cobertura em abóbadas e por uma marquise frontal com teto borboleta.

Fig. 1. Guillermo Bermúdez com a esposa Gabriela em sua casa e com seus alunos na universidade. OROZCO, 2010, p. 67; BARRERA, 2014, p. 6.Fig. 1. Guillermo Bermúdez com a esposa Gabriela em sua casa e com seus alunos na universidade. OROZCO, 2010, p. 67; BARRERA, 2014, p. 6.

Em 1955, Bermúdez adquire uma faixa lateral de terreno a sudoeste, com 5m de largura, e realiza a primeira ampliação, que constava de estúdio e novas acomodações para o casal. Em 1959, com a chegada do terceiro filho, torna-se necessário o acréscimo de uma área de serviços a nordeste, com o que a casa adquire sua forma final.

A Casa Bermúdez é eleita a melhor residência unifamiliar na 1ª Bienal de Arquitetura da Colômbia (1962) com as seguintes justificativas dos jurados: “Que se muestra un muy apropiado sentido de la escala; es racional al tratamiento de los aspectos constructivos y que revela una honestidad y disciplina enfocadas a solucionar el problema arquitectónico” (OROZCO, 2010, p. 68).

Primeira etapa: 1952

A casa inicial é um prisma de dois pavimentos de altura, que ocupa toda a largura do terreno. A implantação proposta subdivide o lote em três faixas no sentido transversal: um jardim frontal, com 6,5m de profundidade, onde se localiza um pórtico-garagem de acesso; a casa propriamente dita, com 8,6m de comprimento; e o pátio-jardim posterior, com pouco mais de 12m de profundidade, onde há um pátio de serviços descoberto delimitado por muros. Os limites laterais eram constituídos por muretas muito baixas, com altura de quatro fiadas de tijolos, que não impediam a relação da casa com a rua frontal (Fig. 2). O bairro era, então, pouco povoado, havendo uma casa de dois pavimentos a nordeste e um terreno baldio a sudoeste do lote.

 Fig. 2. Primeira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Cotas da autoraFig. 2. Primeira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Cotas da autora

O visitante tem acesso à casa através do pórtico-garagem frontal, uma cobertura borboleta formada por uma lâmina de concreto muito leve, apoiada sobre quatro delgados pilares metálicos. Com largura de 3,8m, o pórtico destina-se ao abrigo do automóvel à esquerda de quem entra e à proteção do pedestre à direita, exatamente na direção da porta de acesso, elevada quatro degraus acima do nível do passeio. O teto borboleta é formado por um tramo maior, praticamente horizontal, dimensionado para conter o automóvel, e um tramo inclinado menor, exatamente sobre os degraus da escada, ao lado da qual há uma pequena jardineira. Levemente descentralizada em relação à frente do lote, a cobertura tem o mesmo comprimento de 6,5m do jardim frontal, extensão justa para permitir o estacionamento do automóvel e o posicionamento da escada em frente à porta de acesso. Pavimentado em praticamente toda a sua extensão, o pórtico é flanqueado por dois canteiros (Fig. 3).

Fig.3. Primeira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Cotas da autoraFig.3. Primeira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Cotas da autora

A seguir, situa-se a casa, com planta retangular de 10m por 8,6m, racionalmente dividida em três faixas paralelas no sentido longitudinal do lote: duas faixas laterais, coladas às divisas, com 3,8m de largura; uma faixa central, mais estreita, com 2,4m. O acesso se faz pela faixa central, através de um pequeno hall que contém duas escadas: uma de quatro degraus, que desce até a sala de jantar, e outra maior, que conduz ao pavimento superior. A escada principal tem degraus de concreto engastados à parede e não conectados entre si, arrematados por corrimão metálico. Sob seu patamar há uma pequena floreira. Hall central e escadas formam um núcleo centrífugo de articulação e distribuição dos espaços, indicando três direções de fluxo: abaixo, fica a sala de jantar; à direita, a sala de estar; acima, a área íntima. O acesso ao setor de serviços, à esquerda, é feito no nível mais baixo, através da sala de jantar. Esta solução de distribuição adotada por Bermúdez reduz ao mínimo as circulações internas da casa e promove grande compactação espacial.

Na faixa à esquerda da planta, a nordeste, ficam os ambientes de serviços, constituídos por cozinha aos fundos e dependência de empregados na porção frontal do lote. A cozinha é ligada a um pequeno pátio de serviços descoberto, delimitado por muros, onde fica a lavanderia.

A faixa à direita da planta, a sudoeste, contém os ambientes principais da residência, fluidos entre si e separados da sala de jantar central, 50cm abaixo, por uma mureta-armário. Na porção frontal do lote, fica um pequeno gabinete. No restante do espaço, fica a sala de estar, dividida em dois ambientes pela disposição do mobiliário. Entre gabinete e estar situa-se uma lareira, cuja chaminé serve de elemento divisório. Os espaços sociais têm a fachada toda envidraçada em direção ao jardim dos fundos, para onde a casa se volta. Uma grande esquadria transparente comunica os ambientes sociais com o espaço aberto aos fundos. O mobiliário proposto por Bermúdez associa elementos antigos e clássicos a móveis modernos, alguns projetados por ele próprio (Fig. 4).

 Fig. 4. Primeira etapa. Vistas internas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.Fig. 4. Primeira etapa. Vistas internas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.

O pavimento superior da residência destina-se ao setor íntimo da família, com dois dormitórios e banheiro intermediário. Ocupa somente a faixa a nordeste da planta, exatamente sobre as áreas de serviços. O restante da planta conforma um grande espaço de dupla altura, coberto por duas abóbadas de diferentes larguras, que se dispõem no sentido transversal do lote. A abóbada frontal vence vão de 3,3m de largura, e a posterior, de 5,3m. A linha transversal que divide as abóbadas, aparentes internamente, coincide com a linha virtual que divide a planta em frente e fundos: na frente, sob a abóbada menor, ficam dormitório de serviços, hall e gabinete; aos fundos, sob a maior, cozinha, jantar e estar. Esta linha virtual transversal, adaptada ao jogo de desníveis internos e à posição das abóbadas, cruza-se em planta com outra longitudinal, correspondente à linha da mureta que separa jantar e estar. A planta retangular fica, deste modo, dividida virtualmente em quatro quadrantes.

O prisma de base retangular que conforma a casa, por outro lado, coberto pelas duas abóbadas assimétricas, é dividido internamente em dois volumes: o primeiro a sudeste, com 3,8m de largura, dividido em dois pavimentos; o outro a sudoeste, com 6,2m de largura e dupla altura, este o espaço principal da casa (Fig. 5). A aparente simplicidade da planta, portanto, traduz-se numa grande complexidade volumétrica e compositiva, baseada em relações geométricas, tanto em planta como em corte, que permitem vários níveis de leitura espacial. Não há contato visual entre o espaço social de dupla altura e os dormitórios superiores, o que preserva a intimidade da família.

 Fig. 5. Primeira etapa. Corte. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.Fig. 5. Primeira etapa. Corte. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.

A última porção do lote, por fim, a sudeste, é ocupada pelo grande pátio-jardim de fundos, com cerca de 12m de profundidade e pouco menos da metade da área total do terreno. É para este pátio-jardim que os ambientes principais se voltam e é nele que se realizam as atividades de lazer da família. Sua porção mais próxima à casa é dividida segundo as duas faixas longitudinais da planta. A primeira, junto à faixa central de 2,4m de largura ligada ao jantar, é pavimentada. Nela há uma mesa para refeições ao ar livre engastada à parede. A segunda, junto à faixa longitudinal a sudoeste, de 3,8m de largura, correspondente à sala de estar, é ocupada por uma floreira. Uma grande esquadria de vidro, que se estende de piso a teto, aproxima a vegetação externa do espaço interior. A porção do pátio-jardim aos fundos do lote tem um tratamento mais livre, planejado pela esposa e paisagista Gabriela Samper. A área livre do terreno – à frente e aos fundos – ocupa cerca de 70% da área total do lote.

A estrutura de suporte da casa é feita através de três paredes portantes: as duas medianeiras cegas e a parede intermediária, que separa área íntima e serviços dos ambientes sociais de dupla altura. Além de estruturais, as paredes brancas e espessas contribuem também com o conforto térmico da casa. O arquiteto utiliza materiais e técnicas convencionais – alvenaria portante de tijolos, abóbadas de concreto, madeira e vidro nas aberturas – sem nenhum apelo ao virtuosismo técnico-estrutural.

A orientação do terreno é privilegiada para Bogotá: as fachadas NO (frente) e SE (fundos) recebem luz e sol durante todo o ano. As grandes aberturas de fundos são contrapostas por janelas menos generosas na fachada frontal. Nesta, há três tipos de aberturas: duas janelas pontuais idênticas à esquerda; porta de acesso com esquadria lateral em vidro translúcido ao centro; grande janela superior, à direita. Embora bem menos transparente que a posterior, a fachada frontal, originalmente livre de muros, permite certa relação da casa com a rua. As áreas sociais, entretanto, voltam-se totalmente para o pátio-jardim posterior.

 

Segunda etapa: 1955

 

Fig. 6. Segunda etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Coloração e cotas da autora.Fig. 6. Segunda etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Coloração e cotas da autora.

Em 1955, Bermúdez compra de seu sogro uma faixa de 5m de terreno contígua ao lote de sua residência, a sudoeste. O terreno final passa a ter, assim, 15m de largura.

É realizada, então, a primeira ampliação da residência, que consta de uma faixa de edificação que ocupa toda a largura do lote adicional. O muro portante a sudoeste é perfurado por uma abertura que liga o antigo gabinete à área adicional, e a parede medianeira desloca-se para a nova divisa a sudoeste. Com apenas um pavimento de altura, o novo volume é mais baixo e mais longo que o inicial.

Esta nova ala contém dois tipos de espaços: estúdio com banheiro social à frente do lote, ultrapassando a linha do prisma original em aproximadamente 2m; e novos aposentos para o casal, compostos por banheiro e zona de armário junto ao estúdio, amplo dormitório ao centro, e estar íntimo ao fundo. O espaço destinado ao estar íntimo, com lareira interna, ultrapassa em cerca de 3m o comprimento do prisma original, ficando totalmente em contato com o pátio-jardim posterior, para onde se abre. A ligação da planta deste novo setor com a planta do prisma original se faz por uma espécie de pequeno hall interno, 30cm abaixo da zona de estar, entre estúdio e banheiro do casal, exatamente à frente do banheiro social (Fig. 6). O projeto desta segunda etapa não foi publicado e não existem imagens relativas especificamente a ela; todas as plantas e cortes existentes mostram segunda e terceira etapas em conjunto.

O estar íntimo, aos fundos, liga-se ao pátio-jardim através de grandes aberturas de canto, que se estendem de piso a teto; o estúdio, à frente, liga-se ao jardim frontal através de uma grande porta-janela, também de piso a teto. Todos os banheiros têm iluminação e ventilação zenitais. Um muro alto, que se estende desde o pórtico-garagem até a divisa sudoeste, delimita um novo pátio frontal, reservado ao estúdio, que termina no limite frontal do lote, junto ao passeio. Este novo muro aumenta o grau de privacidade da casa, que perde o contato direto com a rua neste setor. As janelas dos dormitórios a nordeste, entretanto, ainda têm contato visual com o espaço público. Uma vegetação densa e frondosa cresce em frente à residência, resguardando ainda mais o espaço deste novo pátio frontal. (Fig. 7).

A partir desta época, Bermúdez abandona o tema das abóbadas e passa a dedicar-se com mais afinco ao tema dos telhados inclinados. A cobertura do volume adicional é em telhado de três águas rasas, oculto exteriormente por platibandas. A parede de divisa é também portante e as novas aberturas têm panos de vidro bem maiores que a caixilharia original. O novo volume, baixo e com cobertura externamente plana, configura-se nitidamente como adição ao volume original, alto e coberto por abóbadas, não buscando identidade com ele.

 Fig.7. Segunda etapa. Vistas externas: frente e fundos. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.Fig.7. Segunda etapa. Vistas externas: frente e fundos. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.

Terceira etapa: 1959

Em 1959, com o nascimento do terceiro filho, é necessária mais uma ampliação da residência. A divisa a nordeste, onde antes era a lavanderia, ganha uma nova ala de serviços, com um pavimento de altura, que se estende desde a antiga cozinha até a divisa posterior do lote.

A cozinha original é ampliada e a nova lavanderia passa a ser coberta e mais ampla. Dependências de empregados são adicionadas ao fundo do lote, liberando o dormitório frontal, antes de serviços, para uso familiar. A divisa a nordeste passa a ser totalmente fechada pelo limite lateral deste setor, e um volume em forma de flecha, com parede cega, aponta para o pátio-jardim, configurando melhor seu contorno e assegurando sua privacidade. Toda a iluminação e ventilação dos aposentos de serviços são feitas zenitalmente (Fig. 8).

Mais uma vez a cobertura inclinada é oculta por platibanda, dando a ideia de que o novo volume é superiormente plano, exceto por uma espécie de shed, que ilumina zenitalmente a cozinha. O volume correspondente à segunda adição é também baixo e bem distinto do prisma original, deixando clara sua independência formal e compositiva (Fig. 9).

Aos fundos do lote, o pátio interno foi fechado pelos muros e pela nova edificação, tornando a casa mais introvertida, muito próxima à tipologia de casa-pátio. A vegetação cresce de forma significativa. Também os edifícios do entorno urbano, acompanhando o crescimento da cidade, aumentam em densidade e altura, fechando a vista dos morros a sudeste.

 Fig. 8. Terceira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Coloração da autora.Fig. 8. Terceira etapa. Plantas. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez. Coloração da autora.

 

Fig. 9. Terceira etapa. Corte. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.Fig. 9. Terceira etapa. Corte. Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.

 

À frente do lote, o muro se completa e um portão é adicionado, bloqueando a relação da casa com a rua. A vegetação toma conta dos jardins frontais, agora transformados em recintos fechados e privativos.

Fig. 10. Terceira etapa. Perspectiva e vista externa. SAMPER, 2006, p. 129; Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.Fig. 10. Terceira etapa. Perspectiva e vista externa. SAMPER, 2006, p. 129; Arquivos do arquiteto Daniel Bermúdez.

O volume final, resultante das três etapas, é fortemente aditivo, composto pelo prisma de dois pavimentos com cobertura em abóbadas, flanqueado pelos dois volumes baixos e com coberturas predominantemente planas. Não há busca de unidade ou correspondência formal entre esses três volumes e suas diferenças são intencionalmente evidenciadas. O prisma original é o elemento central, maior, dominante no conjunto, como um objeto especial. Os novos volumes, menores e mais baixos, juntam-se a ele como peças secundárias, que complementam o programa de necessidades e estabelecem um contraponto formal. Os muros de divisa envolvem e unificam o conjunto, capturando os espaços públicos para dentro do lote e tornando-os privativos da família (Fig.10).

A cada uma das três etapas, a relação da casa com seu entorno vai se modificando gradualmente, buscando maior privacidade e intimidade. Os muros de contorno, bem como os edifícios do entorno, sobem em altura e a casa fica mais introvertida, isolada da rua e dos vizinhos. A vegetação cresce e o pedestre urbano não tem mais a visão da casa como um prisma, mas sim como uma série de volumes envolvidos por um muro opaco e densa vegetação.

A Casa Bermúdez e a arquitetura moderna internacional

Provavelmente os primeiros contatos de Guillermo Bermúdez com a arquitetura moderna internacional ocorreram durante o curso de arquitetura, nos anos 40. Segundo consta, a PUC do Chile era mais influenciada pelas propostas da Bauhaus e a UNC mais ligada ao racionalismo corbusiano.

Em 1947, logo antes da graduação de Bermúdez, um fato desperta o entusiasmo dos jovens estudantes colombianos: a visita de Le Corbusier a Bogotá. Nas conferências proferidas na cidade, o persuasivo mestre europeu sugere aos arquitetos “introduzir a natureza dentro de casa”, “empregar jardins”, levar em conta as “necessidades do clima” (JIMÉNEZ, 2014, p. 17). Le Corbusier, nesta época, já estava entrando em sua fase de maturidade profissional, que teve apogeu a partir dos anos 50. Nela, o mestre prioriza o “espírito do lugar” ao invés do “espírito da época”, tão preponderante nos anos 20. Passa a empregar materiais em estado bruto e a revalorizar técnicas e materiais tradicionais, como paredes portantes, abóbadas, telhados e tijolos à vista. Também elementos de proteção climática passam a ter grande relevância e, em países de clima quente, o brise-soleil passa a ter importância fundamental como elemento de composição das fachadas. Bermúdez conhece pessoalmente Le Corbusier durante esta visita à Colômbia, fato que marca definitivamente sua obra. Em sua residência, mescla elementos do mestre racionalista dos anos 20 e 30 e do mestre mais maduro, que defende o diálogo entre o edifício, seu entorno e a cultura do lugar.

As paredes laterais portantes, utilizadas no projeto da Casa Bermúdez, têm origem nas Casas Citrohan de 1920, protótipo não construído de residências em série ligadas pelas divisas laterais. Além de adotada no prisma original da casa colombiana, tal solução é utilizada novamente nas suas duas ampliações, como que agregando mais elementos “de série” ao volume inicial. Além disso, o protótipo Citrhoan baseia-se num espaço interior de dupla altura, que conta com uma grande entrada de luz em seu extremo livre, estratégia também empregada por Bermúdez na primeira fase de sua residência.

A solução da casa entre medianeiras foi materializada por Le Corbusier em várias de suas residências urbanas, sempre que o lote e o contexto urbano exigiam. A Casa Cook (Boulogne-sur-Seine, 1926) é um dos primeiros exemplares. Também nela, o arquiteto vale-se das paredes portantes laterais e divide o volume em quadrantes, determinados pela posição do volume descentralizado da escada.

Alguns elementos utilizados por Bermúdez em sua casa têm nítida inspiração em detalhes muito particulares das casas corbusianas. A mesa de almoços ao ar livre proposta para a área de transição entre sala de jantar e pátio-jardim é análoga à mesa existente no terraço da Villa Savoye de Le Corbusier (Poissy, 1929); ambas têm tampo de concreto armado engastado na parede e apoiam-se em dois pés metálicos muito delgados. Também o pórtico-garagem frontal da casa colombiana faz lembrar, de certo modo, a marquise utilizada pelo mestre europeu junto ao acesso principal da famosa Casa Stein (Garches, 1927), embora esta última menor e na versão de apenas uma água.

Aliás, as soluções de cobertura do arquiteto colombiano são francamente inspiradas nas do europeu. Na primeira fase do projeto, Bermúdez alia a borboleta da marquise frontal às abóbadas duplas do grande prisma, ambas soluções empregadas por Le Corbusier a partir dos anos 30. As abóbadas já haviam sido propostas em 1919 para o protótipo das não construídas Casas Monol, também em série. Posteriormente, foram materializadas na Maison de Weekend (La Celle-Saint-Cloud, 1935), cobrindo três vãos de mesma largura e comprimentos variáveis. Nas Casas Jaoul (Neuilly-sur-Seine, 1952), contemporâneas à casa colombiana, Le Corbusier utiliza as abóbadas de maneira similar a Bermúdez: em par e cobrindo vãos diferentes. Aquelas, no entanto, eram de tijolo, do tipo abóbadas-catalãs, e as colombianas foram construídas em concreto armado.

A não construída Casa Errázuris (Le Corbusier, Chile, 1930) é pioneira no uso do teto borboleta, solução que reverte a ideia do tradicional telhado de duas águas com caimento para fora. Cinco anos depois, a solução materializa-se na Casa Le Sextant (Les Mathes, 1935). Bermúdez, no entanto, utiliza a borboleta de forma bem distinta, na marquise frontal, elemento leve sem fechamentos laterais. Também a conjunção das abóbadas com a borboleta não é encontrada na obra do mestre europeu.

Segundo Samper, as paredes portantes e os muros da Casa Bermúdez evocam os da casa colonial colombiana (SAMPER, 2006, p. 53-54). As paredes são perfuradas de maneira calculada, controlando a entrada da luz e a relação com o exterior. Também a ideia de intimidade e introversão, segundo Jiménez, tem origem na casa colonial colombiana, tão familiar a Bermúdez (JIMÉNEZ, 2014, p. 32). Ou ainda, na arquitetura moderna nórdica europeia, como a do arquiteto finlandês Alvar Aalto, um dos pioneiros em criar uma modernidade doméstica adaptada à cultura do lugar. Nesta arquitetura, em regra, os espaços são mais acolhedores, a vida é mais aberta à natureza e mais de acordo com as tradições. Mesclados a elementos modernos, são explorados materiais, texturas e tons do lugar, havendo maior controle do clima (fig. 11).

Fig. 11. Casas de Le Corbusier: Citrohan (1920); Weekend (1935); Les Sextant (1935); Jaoul (1956). BOESIGER; GIRSBERGER 2001, p. 25-67-71-78. Fig. 11. Casas de Le Corbusier: Citrohan (1920); Weekend (1935); Les Sextant (1935); Jaoul (1956). BOESIGER; GIRSBERGER 2001, p. 25-67-71-78.

A Casa Bermúdez é um objeto arquitetônico eminentemente urbano, que cresce e se transforma ao longo do tempo, acompanhando o movimento da família que a habita, o desenvolvimento da cidade em que se localiza e a evolução do pensamento do arquiteto que a idealiza. Inclui, em todas as suas etapas, as concepções do modernismo corbusiano inicial, militante do “espírito da época”, mas prioriza as do seu modernismo mais maduro, adepto do “espírito do lugar”. Olha, além disso, para a casa colonial colombiana e para o modernismo nórdico europeu, filiando-se ao lugar e ao clima. Prioriza intimidade e aconchego, acolhe a tradição do lugar, mas não abre mão das concepções e dos ensinamentos da arquitetura moderna em toda a sua amplitude e faz dela sua principal fonte e referência.

Anos após sua construção, a casa foi declarada monumento nacional. José Alejandro Bermúdez, filho de Guillermo, entretanto, foi autorizado a restaurá-la e transformá-la num restaurante – na condição de respeitar o caráter original da construção, admitidas apenas modificações pontuais indispensáveis ao novo uso.

           

REFERÊNCIAS

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JIMÉNEZ, Virginia Gutiérrez. Transformaciones modernas. Síntesis entre particular y universal en cinco casas de arquitectos. Bogotá: UNC, 2014. Dissertação de mestrado (Mestrado em Arquitetura) – Facultad de Artes, Universidad Nacional de Colombia, 2014.

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WEISS SALAS, Philip. 1+1+2=Uno: forma y figura en el edifício Hermann de Guillermo Bermúdez. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Artes, 2008.

 

 Mini currículo

 Silvia Lopes Carneiro LeãoSilvia Lopes Carneiro Leão

A arquiteta Sílvia Lopes Carneiro Leão é professora de Projeto Arquitetônico na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (Rua Sarmento Leite, 320, Sala 410 – CEP. 90050-170 – Porto Alegre/RS – Brasil – Contatos: 55(51) 3308.3124 –  Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.). Doutorou-se em 2011 pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRGS (PROPAR) com a tese intitulada As fachadas da casa moderna, merecedora de menção honrosa no II ENAPARQ (2012). Criadora da Revista ARQTEXTO, periódico de divulgação do PROPAR, foi Coordenadora Editorial da revista entre 2000 e 2003 e participa até hoje de sua Comissão Editorial. Coordenou por duas vezes o Projeto de Extensão intitulado Arquitetura do Renascimento Italiano, que culminou com viagens de estudos à Itália em 2013 e 2015. Coordenou, também, o projeto de extensão Arquitetura e urbanismo na Espanha: das raízes árabes à cidade contemporânea, que incluiu viagem de estudos à Espanha em 2016. Dedica-se ao ensino de arquitetura e à pesquisa na área de arquitetura habitacional em seus vários âmbitos, com frequente participação em congressos e publicação de artigos.

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  Currículo Lattes

 

Como citar:

LEÃO, Sílvia Lopes Carneiro.Documentação e análise: Casa Bermúdez, 1952-58, Bogotá, Colômbia. Revista 5% arquitetura+arte, São Paulo, ano 13, volume 01, número 16, pp. 93.1 - 93.20, ago. dez., 2018. disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/periodico-1/ciencias-sociais-aplicadas/documentacao-e-analise-casa-bermudez-1952-58-bogota-colombia

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