O casamento de Créssida
RICARDO CARRANZA
Que borra tão estranha entrevê minha doce senhora na fonte de nosso amor?
Troilus e Créssida, William Shakespeare
Enfim resolveu casar-se. Contavam histórias a seu respeito. Rumores. Médico legista renomado, foi o aluno mais brilhante da sua turma, varava madrugadas no período de residência médica, especialização em Berlim, tese publicada, uma referência na área de himenologia, escritório na avenida paulista. Imagine. Mas como o povo fala. Um desvio, uma tara: boatos.
Ela estava deslumbrada. O casamento na igreja mais concorrida da cidade. A longa e notável lista de inscritos. Alguns casais esperavam anos. Mas convenhamos: família tradicional, paulistanos quatrocentões, herdeiros do café; o pároco conhecia o general desde o último golpe. Lista reformulada, decoração contratada, música de Orlando di Lasso - Lagrime de San Pietro – Negando il mio Signor, rosas brancas em profusão. Os noivos despedem-se na igreja.
Ele sempre muito correto. Um beijo, um abraço. Ela sentia-se desejada. Todas as vontades aos seus pés. Um cavalheiro. Ela flutuava.
A melhor amiga põe o dedo na ferida.
- Ele não é estranho?
- Como assim?
- Nunca percebeu nada?
- Nunca fui tão bem tratada na minha vida.
- Ele te beija?
- É claro que sim.
- E como é?
- Ele me respeita.
- Não acha que ele exagera no respeito?
- Tudo tem seu tempo.
- Me olha. Você é feliz?
- Como nunca havia sonhado!
A família cuidava de tudo: vestido, decoração do apartamento, viagem, lista de convidados, o bufê mais elegante da cidade.
A nata da sociedade comparece. Fazem a crônica de seu tempo.
- Como está linda!
- O vestido custou uma fortuna.
- O pai está orgulhoso.
- Que bela bisca!
- E o que falam dele?
- Deus me perdoe.
- Depois te conto.
Carregou-a nos braços até o meio da sala.
- Champanha?
Ela sorria do outro lado mundo. Desvencilhou-se do vestido enquanto ele foi até o freezer apanhar o gelo.
Ébria de tudo, um véu cobria-lhe o corpo.
- Mais champanha?
- Estou zonza.
Dócil, ela caminhava no paraíso enquanto ele a conduzia para dentro da água.
- O que é isso...
- Preparei um banho.
- Mas que água gelada...
- A gente bebeu um bocado. – e a mergulhou na banheira.
Ela tiritava, fria como um cadáver. Ele a possuiu, em brasa, em fúria.
Na sala de música serviu-lhe um precioso brandy espanhol.
Ele teve uma noite de sono profundo.
Ela falava enquanto dormia.
Rumores. Boatos.
No dia seguinte, um faiscante anel venceu temores.
- E a nossa viagem? – fascinada, olhando a jóia.
- Já está tudo agendado: vôo, hotel, roteiro.
- Nós vamos à torre Eiffel?
- Sim.
- Ao Coliseu?
- Também.
- Quanto tempo fora? Um mês?
- Quase isso, tem um congresso que devo participar. Papai me quer senador da república. É um antigo sonho dele. Já está tudo coordenado. Depois serei ministro da saúde. Coisas de papai...
A frase suspensa toca o ambiente com uma sutil e nobre tonalidade de angústia. Ela bebe cada palavra com grandes olhos doces e comovidos. Estava fascinada por presenciar a realidade. Uma vida de verdade, só para ela.
- Nós vamos viajar sempre?
Ele a observa com olhos piedosos. Dois tapinhas macios na face pareciam dizer: - Acorda, você cruzou a fronteira da verdade. Agora tudo vai dar certo.
À noite ela girava pela sala, ébria, os olhos semicerrados.
Ele, charmoso e discreto, derramava gelo no grande oval da banheira perolada.
* O conto “ O Casamento de Créssida” foi classificado em quarto lugar no I Concurso Nacional Academia Campista de Letras, Contos, RJ, 2009;
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