No Centro da Noite
Braços cruzados sobre a mesa, sou um homem no centro da noite.
Do fundo de minha taça, relógio sombra de sol, ecos de vozes.
Banho o rosto no vinho como um deus a criar a si mesmo.
Brilha no nada uma maçã vermelha vidrada de açúcar.
Gente passa por mim num azáfama vazio de carne e hóstia; gente como homem, mulher, história curtida a pólvora ferrada de culpas e desculpas – um diapasão surdo.
Gente como transfusão genealógica – rei, pais, bufão de praça pública, poeta de partos não assistidos, mulher entre o mar e a cama e ambos vazios – sob o sol de refletores dilacera, mulher de olhos vazios, dilacera suas vestes de costuras cinematográficas.
Que dias!
Que fogos de artifício!
Estendo o braço ao lado da taça, apoio a cabeça febril sobre a mesa, sou um homem no centro da noite.
Vejo divindades de ponta de estoque, negro rio banhado em prata, cores apegadas às pedras da pólis, aos meus pés descalços de um sentido – vaso perfurado de memórias.
Sinto o tempo tecido a granito, argila, húmus, cabelos de mato, estrelas, buraco negro, neurônios, urânio, vozes ruído – espessuras.
Sinto e o sentir me abala.
O vinho em minha taça, breve ampulheta, subitamente seca.
Braços sobre a mesa, rolo a taça em minhas mãos, sou um homem no centro da noite.
Ricardo Carranza
Site Provocações, publicado em 13/01/12
http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/enforque-se/no-centro-da-noite
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