As representações e a coisa em si
RICARDO CARRANZA
Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.
As ruínas circulares, Borges
Na orla da praia, o velho homem se deteve diante da pequena concha do mar. Depois de um período de reflexão e devaneio, e o velho homem tanto pode ter se maravilhado com o paradoxo do nácar, criação do gelatinoso molusco, como pode ter recuperado uma imagem do passado – o menino apoiou a concha ao ouvido e se encantou com o chiado do mar. Inspirado, o velho homem escreveu algumas linhas sonhando traduzir a coisa em si em símbolo – ou a suposta coisa em si, como veremos mais adiante. Publicada a obra recebeu novas luzes: a cisão da crítica não abalou o velho homem: um a comentou sob o título – a obra prima do egoísmo; outro exorbitou a dificuldade de a situar na complexidade da história; o leitor a amou ou a esqueceu, e o poeta concedeu entrevista ao remoto programa da TV estatal. Depois que ele se foi para sempre, os versos sobre a alma da concha seguiram se ramificando através de outro homem que, na impessoal generosidade de uma biblioteca, se deteve diante da beleza da Poesia.
A imagem, a palavra, o rosto e o gesto, percepção e autopercepção, enfim, tudo o que o homem introjeta tende à representação. Pode soar desconfortável, mas a consciência – entendida como autopercepção, depende do soma, ou seja, um filtro tradutor de substâncias e estímulos, cujo resultado nada mais é que representação. Em nosso lusco-fusco interior não há nada semelhante à frase como esta será escrita na folha de papel, ou a imagem como a que se definirá na pintura, ou ao gesto, com sua impressão de estabilidade e solidez, no palco do teatro do absurdo. De nosso caos interior traduzimos – com método, constância, suor, em resumo – com amor, uma intenção espectral, instável, em linguagem. Quão distante é o cálcio iridescente das palavras ou imagens que possam descrevê-lo. O conhecimento não nos aproxima, como esperaríamos, e sim nos distancia de a coisa em si, inclusive de nós mesmos e uns dos outros, em sucessivas, infinitas representações.
O anjo Damiel captura, se esta é a palavra, o espectro de um lápis na biblioteca de Berlim. Renunciando à eternidade, em troca da experiência sensorial, Damiel lambe os dedos molhados de sangue e aprecia cor e sabor. A grande conquista do anjo, na conversão, é o câmbio da percepção espectral pela percepção humana e não a conquista de a coisa em si. Para nós, o real, a realidade, o universo, como queiram, é um livro prismático de estilo incomparável que desconhecemos a origem, e cuja leitura é um permanente processo. É ilusório considerar o relampejante fluxo interior, por ser incomensurável, superior à interpretação, mensurável por excelência, se o nosso mundo interior só ganha significado se exteriorizado. A dor se encolhe na presença da morfina e o ensolarado, adorado Eu se dissolve sob o ataque insidioso e eficaz da demência. Os ossos sobrevivem à vaidade do homem e o verbo a ambos. A representação é a nossa máxima potência. Imersos no oceano do real somos seus efêmeros, únicos intérpretes, até o momento. E nos interrogamos, como teria feito o velho homem absorto na infinitude da concha: por que este Ser incomensurável, atemporal, absolutamente esquivo, precisaria de uma sucessão de exóticos escribas?
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