Vazio
GABRIEL SEDA
São Paulo, ano qualquer
Olho pra tela em branco: há um abismo entre meu olhar e a mesma, como se me dissesse: quanto mais me olhar, mais eu olharei para você. Na antessala daquele analista havia o quadro de um garoto olhando para o nada, para o abismo, ou talvez uma montanha distante. Parecia que naqueles momentos que antecedia a sessão, o vazio enchia meus pensamentos. Aristóteles poderia dizer que se enche os pensamentos então não é vazio. Mas talvez só eu visse aquela paisagem tal como um abismo, acho mesmo que era . Mas e agora, o que é que eu vou dizer? Fosse mais fácil para Zaratustra encarar o abismo lá de cima. Mas e eu, como o encaro daqui?
- Decifra-te ou se devore.
Alguém uma vez me disse que a vida é como uma tela em branco, você começa jogando um pouco de tinta ali, outro tanto ali, dá um gole de vinho, troca a música. E vai. Às vezes para. E para e olha e para. E não sai nada. E sente náusea. Talvez aquela mesma náusea que Antoine Roquentin sentiu, horrorizado, diante a ausência do sentido da vida. Tão angustiado que só um encontro com o não-Pierre , ouvindo “Some of these days”, de Ethel Waters, o faria sentir algum alívio.
‘’Some of these days
You'll miss me honey;
Some of these days
You're gonna be so lonely’’
Respiro fundo. Passo um tanto de tinta preta no pincel grosso, fecho os olhos e sai um risco. Dou um trago. Deixo ir. Sempre penso: e se eu parar agora?
Uma tela branca com um traço grosso preto pode ser arte? Parece que há algo de mim que busca autonomia, mas estaria isso desmaterializando o meu objeto de arte?
Me lembro de G.H. olhando pra barata. “O grande vazio em mim será o meu lugar de existir.”. Será que entre o Ser e o Nada habita o vazio? Mas vazio mesmo, sem aquelas tais moléculas quânticas , que os físicos problematizam.
Toca Caetano. “You don’t know me, at all”. Eu me conheço? Boa pergunta para se padecer no divã. Talvez se o general bicentenário sem nome de “O outono do patriarca” fizesse análise, ele saberia a resposta. Mas ditadores não fazem análise.
Tinta aqui, tinta lá. Azul, vermelho, branco e preto, minhas favoritas.
Recordo do áudio de uma amiga fazendo uma referência a Heidegger, do fundamento nulo do nada que sou, da angústia afetiva, do afeto que angustia, da autenticidade, do Kierkegaard, de seu Deus. Mas Deus não está morto, Nietzsche?
Ontem passei por um grafite com o rosto da Rita Lee estampado. Você fez um monte de gente sorrir. Elza Soares e Gal Costa também.
Jogo spray, mais spray, como que para me lembrar do paulistano que sou. Parece que isso me lembra também que a tela é minha, e eu faço dela o que eu bem ou mal quiser.
-Agiste conforme teu desejo, Antígona?
Escuto bem longe aquele hit: “boys don’t cry...”
- Tu podes até vomitá-la, me sussurra Deleuze.
Respiro.
Lembro da ousadia de Pollock para com Guggenheim , dos famosos que já vi em alguma galeria e não sei o nome, lembro sobretudo dos anônimos das ruas grafitadas pelas quais transito.
Jogo mais branco, passo o dedo, deixo escorrer, como se a pedra sempre descesse montanha abaixo. Recomeço? Abraço a pedra, olho pro horizonte. Será que o Sísifo de Albert Camus pode agora sorrir?
Encaro a tela, não é mais branca. A angústia se foi. Não comi a barata.
Gabriel Sêda é latino, neurorradiologista e pisquiatra e gosta de psicanálise, arte contemporânea, viagens, tragos, pessoas e vira-latas.
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Como citar:
SEDA, Gabriel. Vazio. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, v.01, n.24, e213, p. 1-3, jan./jun. 2023. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/magazine-1/arte/gabriel-seda Aprovado em: 2023-6-25
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