A rosa precária
RICARDO CARRANZA
Inelutável modalidade do visível.
Ulisses, James Joyce.
Ele sai de casa à procura de alguma coisa que não sabe o que é e com a qual imagina criar algo que seja para si e para todos. Ele sai de casa e de si mesmo, assume o anonimato ao se colocar disponível para algo que sabe o que é – sua arte, a ser realizada com alguma coisa que desconhece - "Procuro algo que não sei o que é" ele nos diz como se o dissesse para si mesmo; e que deve estar no universo de coisas descartadas, entregues às intempéries, sem abrigo. O caos da mixórdia, no habitat do anonimato, é eleito por Maurício Fridiman como o lugar destinado ao encontro de significados. Mas ele só deve saber o que procura quando o encontra.
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Talvez o trabalho pudesse ser realizado em sua própria casa, mediante lixo doméstico, por exemplo. Fridiman considera parte dos resultados o sair de casa, caminhar pelas ruas, selecionar aquele pedaço de linha embolada. Cada passo é parte essencial do processo - do ao raro. Errático, um primeiro vislumbre, e ele seleciona sua matéria, base de uma existência - através da matéria a vida é manifesta.
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- Isto me interessa, ele pensa, posso fazer algo com isso, dar-lhe dignidade, humanizá-lo. Nada estará à deriva enquanto possível de ser reintegrado, mesmo este papelão esfarrapado, furado de areia, encharcado de chuva, desidratado de sol, orvalhado, carregado de pegadas do acaso.
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Falar ao outro através da matéria convertida em metáfora. Buscar o inteligível não por uma sucessão infinita de acréscimos em uma ordem pré-estabelecida, conforme potencial da escrita, porque a imagem desencadeia a percepção da totalidade. Seria esta uma forma de vencer o tempo?
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Tim Finnegan, operário da construção civil, embriagado, durante o trabalho cai da escada e morre. No velório Tim renasce sob a benção de um trago casual de uísque. O ritual fúnebre descamba em festa. Mas é preciso voltar ao sono, H.C. Earwickwer, seu substituto, acaba de aportar na baía de Dublin.
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O papelão esturricado, o estilhaço de chapa metálica corroída, cores carcomidas, fragmentos da palavra impressa: matérias extrapolam a matéria, contradizem sua origem, tornam-se espaço de contemplação em um outro, o agente fruidor, e vão seguir com ele. O que Fridiman encontra, na ordem do acaso, reúne dois mundos: 1º) tudo se perdeu do papelão, chapa enferrujada, etc., e não pode ser recuperado, e constitui sua identidade enquanto ruína desprezível; 2º) a matéria, vazia de identidade, com que o artista edifica e inaugura um novo status - farrapo de palavra ovo da palavra, linha labirinto, etc.; em um campo de interações e significados.
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À procura de algo que não sabe o que é, ele considera que esse "algo" é parte de um universo que tende ao patamar zero de organização e valor – são escombros decadentes, irrisórios, de uma sociedade, descartes inconscientes de um naufrágio, átomo de carbono no coração da mixórdia; ele faz de si o homem impregnado de intenção estética viabilizada através do fazer, e que o resultado seja potente o bastante para integrá-lo a uma malha cultural pré-existente. Busca subterrânea, vencer o tempo quando nossa ação segue com o outro?
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O artista se aprofunda no idioma de sua intenção que submerge diante do outro. O objetivo não é reviver a experiência do autor, mas reencontrar-se na multiplicidade de significados que eclodem na interseção entre fruição e obra. Tudo que o artista faz é uma possibilidade endereçada ao outro; é este outro que extrai significados, delimita desvios, projeta futuros.
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Do caos sócio-industrial à manufatura, seus passos conduzem ao estabelecimento de uma linguagem incessantemente fundada em uma disponibilidade existencial que considera a partir de si um outro que o completa e excede e dá continuidade. Fridiman exterioriza-se e parte ao encontro do outro para seguir nele, anexo, multiplicado, indiviso, consubstanciado. Ao lançar-se, através de uma obra destinada ao outro, tão carente de completude quanto cada um de nós, faz uma doação consciente da impossibilidade de tornar próximo um destino irremediavelmente fora de nós mesmos, sabendo-se, ao mesmo tempo, que o melhor de si estará com o outro que seguirá com a dádiva e com sua própria parcela de desconhecido. A obra de arte é um meio destinado ao outro que se abre e abriga sob a exteriorização do artista. A experiência do outro não se revela ao autor. A obra é um fluxo de significados abertos à recepção universal. A obra deve partir, o artista tem essa consciência. Mas ele é um ponto de partida. A descoberta é o resultado da interseção entre sujeito e obra, arco voltaico da interpretação.
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O trabalho que Fridiman nos apresenta exige nossa proximidade, quer que nos debrucemos entregues à minúcia sobre aquela bagatela que jamais imaginamos que poderia ser digna de nossa atenção, mas que, no entanto, se reapresenta em um patamar de dignidade, a arte lhe confere esta dignidade, materiais de rua sob a aura de um olhar meditativo. A obra a partir de extratos do caos, não pretende seduzir ou causar repulsa, mas dizer algo, um – Ah! – emocional, de realização, a emergir no âmago do outro, síntese de sua experiência; um – Ah! – entretanto, intransferível, universal e gloriosamente inútil.
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Nas epidermes enrugadas, de códices pacientemente traduzidos, estaria a ressonância de uma alma coletiva, timbre de retalhos a retinir nas texturas dos materiais com que foram erigidas suas lápides de alteridade?
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