CENTRO CULTURAL VILA PRUDENTE
EDITE GALOTE CARRANZA
Resumo:
Este artigo tem como objetivo principal apresentar o Centro Cultural Vila Prudente (1990-2008), projeto do arquiteto-construtor Vitor Amaral Lotufo, localizado em uma das mais antigas favelas da cidade de São Paulo. Trata-se da primeira análise completa do projeto, baseada em fontes primárias: levantamento de campo, redesenho das unidades, depoimentos e entrevistas com o arquiteto e fontes secundárias, pesquisa de doutorado da autora e artigos.
As seis unidades que compõem o projeto serão analisadas em relação ao contexto de produção do arquiteto e às técnicas construtivas nelas empregadas — sobretudo, o tijolo de barro comum que resultaram em soluções espaciais inusuais e lúdicas. O trabalho pretende contribuir para o entendimento da obra, que traz uma forma alternativa de intervenção em sítios precários, além de discutir se a experiência poderia ser replicada em outros locais semelhantes. Dessa forma, o artigo visa contribuir para futuras pesquisas sobre intervenções em favelas e para a historiografia da arquitetura de interesse social paulistana.
Palavras chave: História da Arquitetura Paulistana. Intervenção em favelas. Técnicas
Abstract
The main aim of the article is to present Vila Prudente´s Cultural Center (1990-2008), a project by the architect and builder Vitor Amaral Lofuto, located in one of São Paulo’s oldest slums. It is the first complete analysis of the project, based on primary (survey, redesign of the units, testimonies and interviews with the architect) and secondary sources (the author´s doctorate survey and articles). The six units that compose the project will be analyzed in relation to the architect´s context of production and to the constructive techniques used, mainly the common clay brick, which resulted in unusual and ludic space solutions. The project intends to contribute to the comprehension of the work, which brings an alternative way of intervening in precarious places, as well as to discuss if the experience could be replicated in other similar places. Then, the article aims to contribute to future researches about interventions in slums and to the historiography of São Paulo’s social interest Architecture.
Keywords: São Paulo´s architecture history. Intervention in slums. Constructive techniques
Resumen
Este artículo tiene como principal objetivo presentar el Centro Cultural Vila Prudente (1990-2008), proyecto del arquitecto-constructor Vitor Amaral Lotufo, situado en una de las más antiguas favelas de la ciudad de São Paulo. Este es el primer análisis completo del proyecto, basado en fuentes primarias: estudio de campo, rediseño de las unidades, testimonios y entrevistas con el arquitecto y fuentes secundarias: la investigación doctoral de la autora y artículos. Las seis unidades que componen el proyecto serán analizadas con relación al contexto de la producción del arquitecto y a las técnicas de construcción utilizadas en ellas, sobre todo el ladrillo de barro común, que dio lugar a soluciones espaciales inusuales y lúdicas. El trabajo tiene como objetivo contribuir a la comprensión de la obra, que aporta una forma alternativa de intervención en lugares precarios, además de discutir si la experiencia podría replicarse en otros sitios similares. De esa manera, el artículo pretende contribuir a futuras investigaciones sobre las intervenciones en las favelas y con la historiografía de la arquitectura de interés social de São Paulo.
Palabras clave: Historia de la arquitectura paulistana. Intervención en favelas. Técnicas constructivas.
Introdução
O Centro Cultural Vila Prudente (CCVP) é um espaço comunitário, que promove a cidadania através de atividades educativas, esporte e lazer e está localizado na zona leste de São Paulo, em uma das mais antigas favelas da cidade (Figura 1).
O CCVP foi idealizado por Patrick Joseph Clarke, missionário espiritano irlandês, seguidor da Teologia da Libertação da Igreja Católica e membro do Movimento de Defesa do Favelado (MDF). Ele iniciou suas atividades na favela, em 1977, e contribuiu para melhorar as condições de vida do local. Para materializar o CCVP, Padre Patrick contou com o trabalho voluntário do arquiteto-construtor-professor Vitor Amaral Lotufo (CARRANZA, 2015).
O primeiro contato entre Padre Patrick e Vitor Lotufo ocorreu por volta de 1984, quando o missionário buscou apoio técnico para suas obras no Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes de São Paulo (LABHAB), o qual apoiava o Movimento de Defesa dos Favelados (MDF).
O LABHAB foi criado em 1982, por iniciativa do então coordenador da Faculdade de Belas Artes de São Paulo (FEBASP), o arquiteto Jorge Cáron, em parceria com o arquiteto Joan Villà. O laboratório seguiria o modelo de atendimento às comunidades carentes organizadas, criado pela Cooperativa dos Arquitetos de São Paulo. A Cooperativa, idealizada por Joan Villà, Jorge Cáron, Alfredo Paesani e Jon Maitrejean, possuía cerca de duzentos arquitetos cooperados, que atendiam às comunidades carentes da região de São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo, no período 1978-1979. Na época, o país vivenciava o processo de abertura democrática, por meio da Lei de Anistia e queda do Ato Institucional número cinco (AI-5), que sinalizavam a redemocratização e o fim do Regime Militar, isso permitiu a existência e atuação de organizações sociais (NAPOLITANO, 2014). Portanto, o contexto era favorável para iniciativas como a Cooperativa: os movimentos populares de moradias começavam a se articular em torno das Comunidades Eclesiais de Base; entre elas, as pastorais de São Miguel, que cederam espaço para que os arquitetos atendessem à comunidade. Apesar da breve existência, a Cooperativa foi uma experiência inovadora que serviu de modelo para a criação do LABHAB da FEBASP.
Vitor Lotufo integrou o corpo docente do LABHAB, ao lado de Yves de Freitas, Nabil Bonduki, Antonio Carlos Sant’Anna Jr, João Marcos A. Lopes, Olair de Camilo, Raquel Rolnik, Carlos Roberto Andrade, Maria Amélia, Mauro Bondi, Marco A. Ossello e dos então estudantes Reginaldo L. N. Ronconi, Ema Paula, Luis Caroprezzo, Maria Nelci Frangipani e Martha Genta, entre outros. Para Joan Villà, coordenador do LABHAB, o laboratório, além de assessorar os movimentos de moradia, contribuiu “organicamente a partir de seu interior e foi rigorosamente pioneiro na construção de um saber e de uma prática profissionais que caracterizam futuramente os “técnicos da comunidade” (VILLÀ, 2002, p.43). Segundo Nabil Bonduki, o LABHAB “visava aproximar a Universidade e os Bairros populares” e sua repercussão deu origem a congêneres em outras instituições de ensino, como o Habitafaus da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Santos, o Labotatório do Habitat na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e o Laboratório de Habitação do Núcleo de Desenvolvimento de Criatividade da Universidade Estadual de Campinas (BONDUKI, 1987, p.13). O LABHAB foi uma experiência pioneira no meio acadêmico, que buscou interligar atividades de ensino e pesquisa, direcionados à temática da inclusão social e ao enfrentamento de problemas como: habitação, infraestrutura urbana, serviços e lazer, da denominada “cidade informal”.
Depois da extinção do LABHAB, Nabil Bonduki, Yopanan Rebelo e Martha Gentha continuaram atuando no MDF e nas obras assistenciais de Padre Patrick. Martha Gentha trabalhou na construção de uma creche em sistema de mutirão, enfrentando inúmeras dificuldades, desde as fundações em solo de várzea, furto de materiais de construção, e a falta de recursos financeiros . Neste projeto, a arquiteta introduziu a técnica de mosaico de cacos de azulejos, quando confeccionou pessoalmente um painel, o qual se tornou uma referência e motivou jovens da comunidade a elaborarem painéis semelhantes. Martha Gentha foi responsável, ainda, por convidar Vitor Lotufo a participar das reuniões do MDF e a se integrar como voluntário nos trabalhos dos missionários.
Arquitetura Alternativa de Vitor Lotufo
Arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura Mackenzie, em 1967, Vitor Lotufo é um legítimo representante da Geração AI-5 (MARTINS, 2004, p.17). Composta por jovens que assumiram a ruptura de paradigma em todos os níveis – culturais, comportamentais e profissionais (CARRANZA, 2013).
Nos anos 1970, Vitor Lotufo inicia uma ampla pesquisa de técnicas construtivas, sempre objetivando a economia de meios na produção arquitetônica, como: estruturas geodésicas de madeira, ferro-tijolo, alvenarias portantes de tijolos, abóbadas e cúpulas de tijolos, taipa-de-pilão e terra crua de cupinzeiro. Em seu trabalho, é possível notar um arco de referências: o legado do trabalho intelectual de seu pai, representado na obra “O espaço Psicológico da Arquitetura” ; a obra do arquiteto catalão Antoni Gaudí, no que se refere ao domínio da técnica e da liberdade plástica; o trabalho do norte-americano Richard Buckminster Füller, especialmente suas considerações ambientais e o dimensionamento da estrutura geodésica; a técnica de ladrilho armado – do engenheiro uruguaio Eladio Dieste – fruto de sua postura de independência e reflexão pessoal frente às técnicas contemporâneas do concreto armado e do aço; as críticas radicais do arquiteto Sérgio Ferro, diante da hegemonia representada pela Escola Paulista Brutalista, especialmente as contradições da profissão – dividida entre as regras de produção da arquitetura e seu papel social do arquiteto – expressas primeiramente em ‘A casa popular’, embrião de ‘O Canteiro e o Desenho’. As críticas de Sérgio Ferro, se por um lado denotam a mudança do pensamento arquitetônico, por outro, refletem significativas mudanças na cena cultural ampla, quando surgem manifestações contra culturais reativas ao Regime Militar (CARRANZA, 2013).
Outra referência importante para a formação do arquiteto, foi sua participação como ator no curta-metragem premiado no festival de Cannes, Documentário, de 1966 (DOCUMENTÁRIO, 1966), do diretor Rogério Sganzerla. Este, ao lado de Andrea Tonacci e Julio Bressane, inaugurou a denominada “iconografia urbana do subdesenvolvimento”, elegendo a marginalidade, desigualdade social e estética do lixo como temas (XAVIER, 2001, p.66). Vitor Lotufo interpretou um dos protagonistas do filme, cuja trama envolvia dois jovens de classe média que perambulam pela cidade com a intenção de ir ao cinema. Ocorre que os critérios e preferências de ambos não encontram ponto em comum e eles acabaram por não ver filme algum. Rógerio Sganzerla apresenta o momento político de desorientação através da alienação de seus personagens que, ao buscarem nas colunas dos jornais os filmes, ignoravam as manchetes contundentes sobre o Regime Militar brasileiro. O ideário do Cinema Marginal permeou o pensamento do jovem Vitor Lotufo, quando esteve muito próximo à vanguarda cinematográfica e conviveu com dois dos principais expoentes do Cinema Marginal, em um círculo de amizades que incluía, ainda, o arquiteto Cláudio Sganzerla e Glauber Rocha. Vitor Lotufo cogitou seguir a carreira de ator, mas declinou em virtude de sua vocação para a arquitetura.
A Arquitetura Alternativa de Vitor Lotufo é fruto da síntese das referências acima citadas e, portanto, difere da tendência hegemônica da arquitetura paulista de então, com ênfase no uso do concreto armado e objetivos relacionados à industrialização e serialização. As questões trazidas pelo Cinema Marginal, certamente, sensibilizaram o jovem arquiteto para o problema da proliferação das favelas na cidade de São Paulo na década de 1970 (CARRANZA, 2013). A temática do Cinema Marginal expressa a realidade da classe artística brasileira sob a perspectiva da derrota das utopias de esquerda, depois do AI-5, marco do limite de uma geração, quando não havia mais espaço para artistas politizados e inconformistas com a situação de subdesenvolvimento brasileiro (RIDENTI,2000).
Vitor Lotufo compartilhará sua experiência com alunos em mais de trinta anos de docência. Professor dedicado ao estudo de técnicas e sistemas estruturais, Vitor Lotufo lecionou nas Faculdade Farias Brito (1974-1975); Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Mackenzie (1985-1989); Belas Artes (1983-1986), Pontifícia Universidade Católica – Campinas (1985-2009) e Escola da Cidade (2010-2012), sempre conciliando atividades teóricas em sala de aula e experiências práticas em canteiros experimentais de modelos tridimensionais em grande escala (LOTUFO LOPES, 1981). Vitor Lotufo também atuou em diversos projetos, sempre priorizando as atividades de canteiro devido ao seu perfil de construtor. No final dos anos 1980, assessorou a Associação de Defesa da Moradia e participou da diretoria da Companhia de Habitação Popular, a convite do advogado e vereador Henrique Pacheco. Em seu escritório, Oficina de Habitação, nos anos 1990, participou da construção de habitações de interesse social em regime de mutirão na gestão da então prefeita Luiza Erundina. Mais tarde, realizou seu trabalho voluntário na favela de Vila Prudente, onde projetou e construiu as seis unidades do CCVP: (1) Milton Santos, atelier de mosaicos; (2) Chico Mendes, cozinha e refeitório; (3); Na. Sa. Guadalupe, salas das educadoras e psicólogas, reuniões e palestras; (4) Escola de educação infantil São Francisco de Assis, educação artística, oficina de artes e biblioteca; (5) Salão e Capela São Patrício, salão de danças, teatro e artes marciais, salas administrativas e Capela; (6) Pastoral Dom Oscar Romero, espaço para cerimônias, apresentações musicais, palestras e festas. As unidades do CCVP serão analisadas a seguir.
As unidades do Centro Cultural Vila Prudente
A participação de Vitor Lotufo foi fundamental para a materialização do projeto do CCVP. Isso se consolidou devido ao seu amplo repertório de técnicas construtivas, a maneira horizontal de atuar no canteiro, onde estabeleceu profícua parceria com o mestre de obras José Paulo da Silva, além da predisposição para atuar em condições tão adversas.
Paulatinamente, o arquiteto foi dando forma ao CCVP a partir de habitações típicas do local, que foram totalmente reformadas, ampliadas e requalificadas para abrigar os novos programas.
Vitor Lotufo empregou, prioritariamente, técnicas construtivas artesanais e vernaculares na construção das unidades. O arquiteto expressou total domínio formal e construtivo na utilização do tijolo de barro comum – principal material utilizado – que conformou coberturas de abóbadas, de cúpulas, de troncos de pirâmide, de pirâmides torcidas; vedos executados em aparelho convencional, aparelho diagonal ou aparelho Lotufo de tramas entrelaçadas com vidro plano ou com garrafas de vidro; ferro tijolo – técnica composta por duas camadas de tijolos e armada com um vergalhão de aço central, que permite a execução de abóbadas de ogivas; arcos e escadas de tijolos, sem estrutura auxiliar, e escadas helicoidais portantes. Na análise do engenheiro Rebello, além de bonitos, os projetos do CCVP são de “grande audácia estrutural, usando formas em que prevalecem compressão, apropriadas para o uso de tijolo” e que Vitor, como admirador da obra de Antoni Gaudí, adotou nos projetos conceitos do “grande arquiteto catalão”.
A invenção do tijolo é atribuída ao povo sumeriano, que habitou o vale dos rios Tigres e Eufrates, na antiga Suméria e Assíria, antes de 3 mil a.C.. O tijolo é um material primordial que “deu ao homem um meio de expressão livre, que não sofria grandes limitações de forma ou tamanho” (CHILDE, 1981, p.116). Tijolo é o nome genérico para a peça de barro, em forma de paralelepípedo retangular, cuja espessura é igual à metade da largura e está igual à metade do comprimento (CORONA & LEMOS, 1972). Ele é elaborado com pasta de argila amassada com água, moldado em formas de madeira, seco ao sol e depois cozido em fornos com temperaturas de 900º C a 1000ºC, em média, pois, acima de 1200ºC, ele atinge a vitrificação (BAUD, [s.d.]). No decorrer da história, o tijolo está presente em obras de pequeno ou grande porte, como, por exemplo, o arco de Ctesifonte, em Bagdá, Iraque, em 550 D.C., com 34m de altura e 25 metros de largura (DALZELL, 1977). No Império Romano, o tijolo foi amplamente empregado, sendo encontrado nas ruínas de cidades de Pompéia e Herculano. Naquela época, o tijolo romano media cerca de 45x30x7,5cm e era utilizado na construção de paredes, em geral, revestidas com pedra ou cobertas com estuque – argamassa de gesso de calcário, também utilizada em arcos e abóbadas. Embora a utilização do tijolo tenha sido reduzida em alguns países, com o fim do Império, no século V, o material jamais fora esquecido (DALZELL, 1977, p.30). No decorrer dos séculos, o tijolo teve alterações significativas em suas dimensões, métodos de assentamento – ajuste corrente ou meio tijolo, aparelho de sistema francês, aparelho de sistema inglês, aparelho de sistema flamengo, aparelho de sistema holandês – textura e variedade cromática em função do tipo de barro utilizado (BAUD, [s.d.]). O tijolo maciço, sem furos, é muito utilizado na construção por suas qualidades de resistência, durabilidade e isolamento térmico e acústico, sendo aplicado de diversas formas: alvenarias – portantes ou de vedação – arcos, abóbadas nervuradas e cúpulas.
No Renascimento, o tijolo foi resgatado por Felippo Brunelleschi para a construção da cúpula da Catedral Santa Maria de Fiori (1420-36), em Florença, onde aplicou a técnica de assentamento em escama de peixe em curvas ascendentes, que foi determinante para o sucesso da empreitada. Após a Revolução Industrial – datada a partir do domínio do vapor, em 1769, por James Watt, o tijolo caracterizou as construções fabris e suas chaminés (KATINSKY, 1998). No Modernismo Catalão, Antoni Gaudí deixou seu testemunho de domínio formal e construtivo do uso de tijolos em obras como a Cripta da Colônia Güell (1898-1915); Colégio De les Teresianes (1889-1890) (CRIPPA, 2004) e a Torre Bellesguard (1900-05) (GUELL,1994).
Embora o Movimento Moderno tenha se expressado predominantente utilizando materiais como aço, concreto e vidro, as qualidades do tijolo foram apreciadas por arquitetos como Alvar Aalto, Frank Lloyd Wright e Jacobus Oud (DALZELL, 1977), nas primeiras décadas do século XX. Le Corbusier, por exemplo, teria adotado a técnica da abóbada catalã em seus projetos, após ter visitado a Oficina e Sala de aula da Sagrada Família (1909), de Gaudí, nos anos 1930 (CRIPPA, 2004). Ele associou a abóbada catalã com as estruturas de concreto armado aparente e vedos de tijolo à vista, nos projetos das Maison Jaoul (1951-1955). Nos anos 1960, os arquitetos Ricardo Porro, Roberto Gottardi e Vittorio Garatti criaram o complexo das Escolas Nacionais de Artes, em Cuba, utilizando predominantemente técnicas associadas ao tijolo. Segundo Porro, as formas seriam: “mais surrealista que socialista” (LOOMIS, 1999, p.xl). No contexto de revisão crítica do Movimento Moderno, surgiram outras propostas em favor do resgate da arquitetura vernacular e anônima, utilizando técnicas associadas ao tijolo, como as que foram apresentadas na exposição “Arquitetura sem arquitetos”, do MoMa, entre o período de 1964-1965, organizada por Bernard Rudofsky.
Na cidade de São Paulo, cuja técnica tradicional foi a taipa de pilão, os primeiros registros da presença do “tijolo cozido” datam do século XVII, na construção de um pelourinho paulistano por Fernão Álvares, oleiro fabricante de telhas (LEMOS, 1989, p.40), e dos pilares do alpendre da Igreja de São Miguel, de 1622 (SAIA, 1939) Autor, não consta referência por gentileza ajustar. Contudo, a utilização do tijolo só se torna corrente a partir do ciclo econômico do café. Segundo Lemos (1989, p.40), “somente o tijolo permitiria a fácil construção de aquedutos, de muros de arrimo e o calçamento dos grandes terreiros de secagem dos grãos” e, com a difusão da técnica, o tijolo foi substituindo a taipa. A partir de 1850 “tijolos eram usados de maneira estrutural, enquanto a taipa ia perdendo o prestígio” (OLIVEIRA, 2003) Autor, não consta referência por gentileza ajustar e, ao final do século XIX, a São Paulo da taipa passa a ser reconstruída sobre si mesma em alvenaria de tijolos, com ajuda dos mestres de obra italianos: capomastri (TOLEDO, 2004). Neste período, o ecletismo valorizou o uso do tijolo à vista com a denominação de “estilo francês”, o qual “dispensava ornamentação em relevo, estuques e molduras”, que foi difundido tanto na arquitetura de profissionais anônimos ou renomados como Ramos de Azevedo, por exemplo (LEMOS, 1989, p.186). A respeito da arquitetura moderna paulistana, Vilanova Artigas, adepto da vertente técnica e tecnológica da arquitetura, utiliza, com maestria, alvenaria de tijolos em sua Casinha, de 1942. Contudo, o uso do tijolo comum arrefeceu com o passar dos anos e hoje seu potencial é pouco valorizado na construção civil “sendo usado apenas em construções secundárias e baratas” (RIPPER, 1995, p.55).
No projeto do CCVP, Vitor Lotufo optou por resgatar as técnicas construtivas artesanais e ancestrais, que empregam o tijolo de barro comum, pois tinha como meta a economia de meios. Quando empregado nas coberturas, o tijolo é trabalhado com formas curvas ou escalonadas, que maximizam o desempenho à compressão e favorecem o escoamento das águas pluviais, que dispensam a necessidade de impermeabilização. Embora o tijolo seja o material predominante, o arquiteto também utilizou lajes mistas pré-fabricadas – vigotas de concreto e blocos cerâmicos, sempre com formas curvas, forte inclinação, ou formando sheds de iluminação e ventilação, a fim de obter melhor escoamento da água pluvial, evitando, assim, a necessidade de impermeabilização.
As técnicas empregadas por Vitor Lotufo apresentaram bons resultados técnicos e econômicos, devido à pouca quantidade de concreto, aço e madeira para cimbramentos, ausência de necessidade de impermeabilização convencional com mantas, reduzindo significativamente os custos de obra. A seguir, discutiremos como as técnicas foram empregadas nas unidades do CCVP.
A primeira unidade do CCVP a ser construída foi a Oficina de mosaicos Milton Santos (Figura 2), localizada ao lado da creche. Os missionários adquiriram uma habitação de 79m² de área, em três pavimentos, a qual seria reformada para um velório. Depois, os missionários mudaram de ideia e resolveram implantar ali a primeira unidade do CCVP. Para a requalificação e alteração de uso, o projeto previu a demolição das paredes internas e a substituição da cobertura que estava deteriorada. Lotufo construiu uma nova cobertura de ferro-tijolo, em forma de tronco de pirâmide denteada, com ventilação e iluminação zenitais.
A solução se mostrou adequada em vários aspectos: a beleza plástica da forma piramidal, cor e a textura dos tijolos e luz zenital; a ampliação visual do espaço interno e apresentação do bom desempenho termo acústico devido ao efeito chaminé; resultados significativos na economia de energia elétrica com iluminação artificial diurna. A forma piramidal construída com tijolos se mostrou econômica se comparada às lajes de concreto armado convencionais. O arquiteto também substituiu a circulação vertical original por uma nova escada helicoidal de argamassa armada, cujas peças definem um degrau completo – piso e espelho – moldada in loco mediante formas de madeira revestidas com chapa de aço zincado (Figura 4). Depois de curadas, as peças são fixas ou “costuradas” umas às outras com parafusos transpassantes de 10mm (CARRANZA, 2015). O conjunto, que funciona como uma “mola esticada”, no dizer do arquiteto, é biapoiado no piso e laje do pavimento superior sem estrutura auxiliar (Figura 5).
A segunda unidade a ser construída foi a Escola Infantil São Francisco de Assis (Figura 6) e, para esta unidade, os missionários adquiriram uma habitação de dois pavimentos e área de 125m². No pavimento térreo, foram projetados dois novos sanitários e biblioteca com alvenaria de tijolos de barro e prateleiras de argamassa armada. Entre o corredor e o espaço da biblioteca, o arquiteto projetou um arco de tijolos que sustenta o pavimento superior. O pavimento superior é destinado a uma grande sala de aula, com mezanino para guardar o material escolar, este construído com piso de madeira apoiado sobre uma viga vagão que vence toda a largura de 5m da edificação. A cobertura original de laje plana foi substituída por uma nova laje mista de vigotas de concreto e blocos cerâmicos, biapoiada no sentido transversal da edificação e que se desenvolve em curvaturas defasadas formando sheds para iluminação e ventilação zenitais. A solução de cobertura gerou um espaço bem iluminado e arejado, adequado às atividades didáticas. Neste projeto, a comunidade também contribuiu com a decoração das paredes, com mosaicos e com murais multicoloridos, criando uma atmosfera lúdica para as crianças.
A unidade Salão e Capela São Patrício (Figura 7) é destinada às atividades de dança e artes marciais, além de contar com salas administrativas e uma capela. Para a construção desta unidade, foi adquirida uma habitação de três pavimentos que, diferentemente das outras unidades, possuía um barracão de madeira na porção posterior que foi totalmente demolido. Toda a edificação original foi reformada para abrigar salas administrativas e sanitários. Uma nova escada helicoidal foi construída em alvenaria de tijolos igual a da unidade Nossa Senhora de Guadalupe e resolve a circulação vertical. A cobertura original de armação de madeira e telhas de fibrocimento foi substituída por laje mista – vigotas de concreto e blocos cerâmicos, construída de forma nada convencional. A laje é apoiada nas paredes periféricas transversais da edificação, formando curvaturas no sentido longitudinal. Essa solução plástica permitiu o melhor escoamento da água pluvial a fim de eliminar a necessidade de impermeabilização convencional. Na porção posterior, foi construído um amplo salão de pé-direito duplo, destinado às atividades de dança e artes marciais. O novo espaço foi totalmente construído com a técnica de ferro-tijolo, em abóbadas nervuradas, parcialmente preenchidas com garrafas de vidro que formam vitrais de iluminação (Figura 8)
O salão possui um mezanino que é estruturado por uma viga biapoiada que vence todo o vão transversal. Nele é possível assistir às apresentações e competições. As abóbodas do salão também sustentam a Capela São Patrício, localizada na cobertura, que é formada por uma única abóbada de ferro-tijolo.
Os vedos longitudinais são compostos por tramas de tijolos assentados nos eixos horizontal e vertical, formando triângulos que possuem incrustações de garrafas coloridas (aparelho lotufo) (Figura 10); um dos vedos transversais possui um vitral formado por uma trama de tijolos entrelaçados e fechamento de vidro colorido tipo fantasia martelado; o outro vedo transversal, localizado na face leste, é formado por uma espécie de rosácea de tijolo e vidro ( Figura 9). A luz filtrada pelos vidros coloridos cria um ambiente introspectivo próprio ao sagrado, mas com uma atmosfera delicada e lúdica.
A unidade de refeitório e cozinha Chico Mendes (Figura 11) foi implantada em uma habitação de dois pavimentos e área de 67,31m². Para a nova função, o projeto eliminou todas as paredes internas a fim de formar um salão único para o refeitório, uma despensa no pavimento térreo e uma cozinha com forno de pizza, no superior. Uma nova escada autoportante, em tijolos de barro argamassados, resolve a circulação vertical construída apenas com tijolos sem estrutura auxiliar de concreto. No pavimento superior, o telhado de armação de madeira e telhas de fibrocimento foi substituído por duas pirâmides helicoidais, com iluminação e ventilação zenitais, executadas em ferro-tijolo. A nova cobertura se revelou especialmente eficiente, para circulação de ar devido ao efeito chaminé, em que as pirâmides funcionam como verdadeiras coifas em escala ampliada. A cobertura não recebeu impermeabilização convencional, apenas uma fina camada de argamassa de cimento, areia traço 1:3 e pintura impermeabilizante. O projeto foi bem recebido pela comunidade, que se engajou, executando o mural de mosaico cerâmico, que cobre a fachada frontal e outros que decoram as paredes internas.
A unidade Nossa Senhora Guadalupe (Figura 12) destina-se aos espaços administrativos do CCVP, composta por sala das educadoras e psicólogas, salas de reuniões e palestras. Para esta unidade, foi adquirida uma habitação de três pavimentos com área de 183m². O partido procurou aproveitar o perímetro e as lajes originais da construção, sendo necessária a demolição de todas as paredes internas para as novas funções. Assim, foi necessária a construção de arcos para a sustentação das lajes e para a criação de uma nova circulação vertical. Uma nova escada helicoidal foi construída, posicionada no eixo central e transversal da edificação exatamente sob uma viga, que foi parcialmente demolida e sua porção remanescente foi apoiada no eixo central da escada, que se tornou uma. A escada foi construída em alvenaria, na qual a cada três fiadas de tijolos de 6cm corresponde a um espelho (Figura 13). A laje de cobertura foi substituída por uma cúpula de tijolos com diâmetro de 4.20m, com iluminação e ventilação zenitais e um caixilho tipo rosácea, que não recebeu impermeabilização convencional, apenas uma camada de argamassa de cimento e areia traço 1:3 e pintura impermeabilizante. O salão sob a cúpula é um espaço destinado às reuniões, palestras e cursos. Como na unidade anterior, os espaços internos foram valorizados com murais e mosaicos coloridos, que cobrem as paredes internas e externas da unidade, executados por jovens da comunidade.
O Centro Pastoral Dom Oscar Romero (Figura 14), tem um programa de atividades diversificado: cerimônias religiosas, festas e apresentações musicais. A edificação original, com três pavimentos e área de 170m², possuía quatro habitações, construídas com técnica construtiva tradicional – blocos cerâmicos, laje mista e estrutura de concreto armado. Para a implantação dessa unidade, o projeto previu a unificação total dos espaços dos pavimentos e a eliminação das colunas centrais existentes. Novos apoios foram executados em colunas-feixe desenvolvidas a partir de arcos, com a função de sustentar as lajes dos pavimentos. No último andar, as colunas em forma de feixe de paraboloides confirmam a cobertura. Os tijolos assentados no sentido longitudinal acompanham a curvatura das barras de aço. Em intervalos não modulares, garrafas foram incrustadas nos vãos entre os tijolos. Na face externa, as abóbadas foram revestidas com argamassa e pintura impermeabilizante. A plástica da cobertura é vigorosa e reforçada pelo colorido dos tijolos, e pelas garrafas verdes e azuis, criando diversos pontos luminosos coloridos.
Concluindo, apesar das unidades terem sido implantadas separadamente no sítio, o tijolo e os mosaicos imprimiram unidade ao conjunto CCVP. Todas as unidades possuem partidos introspectivos, com pouco ou quase nenhum contato visual com o exterior. A luz natural é um elemento fundamental nos projetos: a luz penetra nos ambientes em variadas soluções, tais como, claraboias, sheds, vitrais, ou mesmo pontos luminosos formados por garrafas coloridas incrustradas nos tijolos. A arquitetura resultante é repleta de texturas, formas, cores e luz, criando um contraste vigoroso em relação às demais edificações da favela, uma espécie de situação nos termos da Internacional Situacionista (IS). O conceito principal da IS “construção de situações” – que deu nome ao grupo francês – seria uma espécie de jogo urbano que utiliza uma variedade de artes e técnicas para a construção de um “ambiente novo”, ou um “elemento de competição e separação da vida cotidiana” a fim de valorizar o conteúdo psicológico do urbano. Para os situacionistas, a cidade é a “expressão natural da criatividade coletiva” e não poderia ser planejada por um único indivíduo (HOME, 1999, p.52). Por fim, os murais coloridos, além de humanizar os espaços e trazerem surpresas a cada viela, simbolizam a afirmação por uma urbanidade cada vez mais necessária aos assentamentos precários (Figura 15).
Uma alternativa para a cidade informal?
Considerada uma das mais antigas favelas de São Paulo, a favela de Vila Prudente surgiu por volta de 1940, ao lado de outras cinco: Mooca (Oratório), Lapa (Guaicurus), Ibirapuera, Barra Funda (Ordem e Progresso), segundo pesquisa da Divisão de Estatística e Documentação da Prefeitura (PASTERNACK, 2002). A favela começa a ser reconhecida como um organismo – ou um problema à época – a partir do Primeiro Congresso Brasileiro de Urbanismo, em 1941. Naquela época, a favela de Vila Prudente seria um fenômeno novo de configuração – se comparado às favelas do Rio de Janeiro mais antigas – embora as “habitações subnormais” na cidade de São Paulo datem das últimas décadas do século XIX (KEHL, 2010, p.35). Durante os anos 1970, em pleno Milagre Econômico, as favelas de São Paulo apresentavam taxa de crescimento de 20,16% maior do que a taxa do município, de 3%, ocupando encostas, beiras de cursos d’água e áreas de mananciais, tornando-se um “problema” nas décadas seguintes (KEHL, 2010), já que atingiu o patamar de 7,6% da população total do município de São Paulo, em 1996 (TASHNER, 2001). Para o então secretário da habitação do Estado de São Paulo, Krähenbühl (2009), a favela é fruto da “desigualdade econômica e social que precisa ser combatida”, e hoje não se pode “imaginar que favelas como Heliópolis ou Paraisópolis (ou Vila Prudente) vão sumir do mapa” uma vez que são espaços estabelecidos e dotados de infraestrutura. Desde seu início até os dias atuais, as favelas se transformaram, fisicamente, de barracos de madeira e chão de terra batida para habitações de alvenaria assobradadas, e laje de cobertura. Em termos sociais, é habitada por “trabalhadores pobres que produzem e consomem e que não encontram na metrópole local acessível de moradia no mercado formal” (PASTERNAK, 2002, p.10). Na análise de Kehel, a favela “é uma construção comunitária: nela cada tijolo é uma biografia. Ao contrário da ‘cidade formal’, e exatamente como as antigas aldeias da pré-história, a favela é um ambiente que foi inteiramente construído, com as próprias mãos, pelos homens que a habitam” e portanto, não “fala a mesma linguagem nem apresenta o mesmo padrão de desenho da vizinha ou do entorno” (KEHL, 2010, p.97). Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, o bairro de Vila Prudente possui 9 favelas com estimativa de 1960 domicílios, em 2016; dados que incluem a Favela de Vila Prudente (SÃO PAULO, 2016). Portanto, mais do que um “problema provisório”, a favela de Vila Prudente é a realidade de 76 anos a ser enfrentada, como têm feito os padres espiritanos, desde 1977.
Como os missionários, Vitor Lotufo acredita na convivência entre as ditas cidades formal e informal, e que é preciso ações objetivas e diretas para melhorar as condições de vida das pessoas, em suas palavras: “Assim, iniciativas como a dos missionários espiritanos são louváveis à medida que possam melhorar as condições de vida do sujeito onde ele está. O Centro Cultural vila Prudente tem esse objetivo, valorizar essas pessoas para que elas possam se animar para continuar e melhorar suas vidas” . Essa visão de mundo, poderia ser entendida dentro do conceito de mixofilia definido pelo filósofo Zygmunt Bauman como a crença “no potencial humano para que um outro mundo seja possível” (BAUMAN, 2009, p.91). Para muitos, esta visão de mundo pode ser considerada uma quimera, ou Utopia, no sentido corrente. Contudo, para o arquiteto, o sentido da palavra Utopia, deve ser entendido nos termos de Herbert Marcuse: algo possível, porém ainda não realizado, ou como a “grande recusa” ao status quo (MARCUSE, 1967, p.34). Certamente, os espaços lúdicos do CCVP podem contribuir para construção de uma “Utopia Concreta” ou uma nova realidade.
Segundo Ruth Verde Zein, a Utopia esteve presente na busca por soluções para a questão habitacional da cidade moderna, conforme seu prefácio para o livro de Joan Villá:
Entre as utopias da modernidade, uma das mais resistentes à crítica, porque se apresenta como verdade inconteste, é a ideia de que só pela industrialização massiva se pode chegar a resolver a questão habitacional. Outra contra utopia mais recente é a noção de que a arquitetura só poderá cumprir de fato sua tarefa se contar com a participação do usuário, questionando fundamentalmente o papel do arquiteto como manipulador exclusivo da arquitetura. As soluções propostas nas obras aqui reunidas, (livro) tentam conciliar de maneira viável todas essas utopias, propondo uma terceira: a de que boa arquitetura pode e deve ser feita em quaisquer circunstâncias, por mais difíceis que se apresentem as situações econômicas e sociais (VILLÀ, 2002).
Vitor Lotufo, em sua trajetória (CARRANZA & CARRANZA, 2010b), acreditou nas utopias descritas por Ruth Verde Zein; na primeira, quando construiu a Casa de Botucatu, em 1979, utilizando estruturas geodésicas de madeira. Casa que seria um protótipo para a produção serial de habitações; depois acreditou na segunda, quando atuou no LAB HAB e na Oficina de Habitação, realizando habitações de interesse social em regime de mutirão na gestão Luiza Erundina; já o projeto do CCVP representa a terceira utopia ‘a de que boa arquitetura pode e deve ser feita em quaisquer circunstâncias’.
Talvez, as técnicas construtivas aplicadas no CCVP poderiam ser uma alternativa para a construção de habitações. Nesse sentido, a experiência do CCVP poderia ser analisada como alternativa para outras intervenções semelhantes em favelas ou habitações de interesse social. Isso porque a utilização de alvenaria de tijolos e da técnica do ferro-tijolo são econômicas em comparação ao sistema construtivo comumente empregado nas periferias e favelas, a saber: estrutura de concreto armado, cobertura em lajes mistas, ou telhado de telhas de fibrocimento, e vedação em alvenaria de blocos cerâmicos. Os paramentos externos executados com alvenarias de tijolos são mais econômicos, pois apresentam boa estanqueidade e prescindem de argamassas de revestimento: chapisco, emboço e reboco. Em geral, nas favelas, as alvenarias de blocos cerâmicos não são argamassadas devido ao custo, ficando sujeitas às infiltrações e demais patologias. Em relação às coberturas – cúpulas, abóbadas, abóbadas nervuradas de ferro-tijolo – elas apresentam-se mais econômicas em comparação às lajes de concreto, uma vez que utilizam pouco aço e não necessitam de formas de madeira e cimbramentos, podendo ser executadas sem uso de equipamentos pesados. Essas coberturas apresentam bom resultado térmico; a estanqueidade é otimizada pelas formas inclinadas que contribuem para um melhor escoamento das águas pluviais, além de prescindirem de impermeabilização convencional com mantas, utilizando-se, apenas, de uma camada de argamassa de cimento e areia traço 1:3, além de pintura impermeabilizante. No CCVP, o arquiteto utilizou, prioritariamente, o tijolo nas coberturas, embora tenha utilizado algumas lajes mistas convencionais – vigotas de concreto e blocos cerâmicos – que foram executadas de maneira não usual, ou seja, sem impermeabilização e em curvas ou com forte inclinação, a fim de obter melhor escoamento da água pluvial, dado que contribuiu para a salubridade das construções, pois evitou infiltrações.
Por fim, resta mais uma questão a ser considerada neste projeto: como foi possível atuar em um canteiro em condições tão adversas? As unidades foram executadas pelo mestre Jose Paulo Silva, que foi integrado ao processo do projeto. Ele, ao final dos trabalhos, conquistou prestígio na comunidade, e pode ser considerado um aspecto positivo. Por outro lado, o mestre trabalhou apenas com um ajudante, e sem maquinário, o que ampliou o tempo de obra e deve ser considerado como uma desvantagem. Embora a morosidade seja o aspecto negativo da proposta, o tempo de obra poderia ser reduzido caso os trabalhos fossem realizados por um número maior de profissionais.
Conclusão
Vitor Lotufo, quando se tornou voluntário nas ações dos missionários, sabia exatamente a dimensão do problema a ser enfrentado, pois, construir um projeto na favela exige soluções que respondam às suas peculiaridades físicas e socioculturais. A materialização do projeto só foi possível devido ao amplo repertório de técnicas construtivas utilizadas, sobretudo, o tijolo comum, que viabilizaram economicamente a proposta. O projeto possui linguagem arquitetônica singular, que em nada se assemelha às construções do entorno imediato nem às edificações da cidade dita formal. Nesse sentido, o CCVP cria uma espécie de realidade lúdica, ou uma situação, nos termos da Internacional Situacionista, e permite aos moradores da comunidade desfrutarem da emoção estética arquitetônica. Em termos técnicos, os conhecimentos nele produzidos, poderiam ser utilizados por outras comunidades semelhantes, ou mesmo, ser avaliados em programas de habitação de interesse social. Vitor Lotufo, aquele jovem que um dia pensou em ser ator – e, felizmente, para arquitetura paulista, desistiu – realizou sua “sagrada família” na favela de Vila Prudente: o CCVP.
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Mini Currículo:
Como citar:
CARRANZA, Edite Galote. Centro Cultural Vila Prudente. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, ano 14, v.01, n.17, e106, p.1-26, jan./ jun. 2019. Disponível em: http://revista5.arquitetonica.com/index.php/uncategorised/centro-cultural-vila-prudente
OBS: Artigo publicado originalmente na revista Oculum Ensaios.
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