A Máquina Não Objetiva do Mundo
RICARDO CARRANZA
HORÁCIO: Bem, vamos nos sentar, então, e ouvir Bernardo contar o que ambos viram.
BERNARDO: Na noite passada, quando essa mesma estrela a oeste do polo estava iluminando a mesma parte do céu que ilumina agora, Marcelo e eu – O sino, como agora, badalava a uma hora.
MARCELO: Silêncio! Não fala! Olha – vem vindo ali de novo!
(Entra o Fantasma.)
Hamlet, Shakespeare
A MÁQUINA NÃO OBJETIVA DO MUNDO
O sentinela, da cena em epígrafe, associa o cosmos, no sentido de uma ordem, à aparição do Rei da Dinamarca. A hipótese remonta a um problema de avaliação. No Egito Antigo, por exemplo, a cheia do Nilo era atribuída ao surgimento da estrela Sirius. A entrada do fantasma ocorre – precisamente quando – o sino bate e certa estrela é visível a oeste do polo. Fantasma e estrela em sinergia, portanto. Uma tal disposição dos fatos nos favoreceria a considerar uma conexão temporal entre real e sobrenatural. Shakespeare foi um homem do seu tempo e um estrategista sagaz. Entendia a importância da ambiência. Manejou, como poucos, a lógica do espaço de representação. Os critérios dos mundos real e ficcional, como sabemos, não devem ser os mesmos; onde aquele se nos apresenta desequilibrado, desarticulado e, não raro, imprevisível, este é regido, em princípio, pelo equilíbrio, coesão, articulação, e um certo grau desejável de previsibilidade. O prazer estético não acontece por acaso. O fantasma nos dá o eixo da trama. A lógica da arte reclama sua autonomia em relação à realidade. Assim o teatro, na sua dimensão física, está sujeito ao desgaste do tempo; a tragédia, enquanto representação, o ignora, em parte, para impor sua efetividade. O tempo rege o mundo real. E sua percepção depende, a nosso ver - exclusivamente, da consciência, este repositório das representações.
Em Poesia, a metáfora – Máquina do Mundo, é um clássico. O seu exame nos levou por um caminho semeado, em um primeiro momento, com as flores do entusiasmo, que cedeu, aos poucos, a um leito de cascalho de arestas afiadas e saibro encharcado; a obstinação, além do método, nos impeliu a continuar. O resultado foi a flor fragmentária que identificamos com o seguinte enunciado: a metáfora do mundo como simples máquina, comparável à produzida pelo homem, não se sustenta por uma razão única e suficiente: um mecanismo sem um fim, como entendemos aqui o mundo, deve ser algo sui generis, afastada a sombra de criação divina que se insinua, insidiosa, nas camadas da metáfora que consagramos à nossa atenção; mantê-la mediante omissão seria compactuar com a existência de um mundo cuja finalidade dependeria de um deus arbitrário, assombrosamente poderoso que, em algum momento, colocaria um ponto final à sua criação em favor de um outro mundo, este sim, eterno e em tudo superior ao modesto devir da natureza. Libertos da premissa sobrenatural, pois esta exigiria de nós a renúncia à liberdade – este combustível da felicidade, desconsiderada a máscara asfixiante do dogma, podemos nos dedicar à palavra na sua origem.
A varredura de lentes, produzidas por um conhecimento aperfeiçoado durante sucessivas gerações, não pôde detectar, em nenhuma parte do mundo, qualquer traço de humanismo; por outro lado, compreendeu-se sim, para alegria de uns – aqueles que tem amor ao conhecimento, e preocupação de outros – os que esperam pela adequada satisfação dos seus desejos, que o mundo é processo e o processo do mundo é um mergulhar em si mesmo sempre e sempre sua falta de harmonia nos aponta o incontornável enigma: eu sou o imprincipiado.
Homo mensura.
Protágoras
O vínculo entre o ser e o mundo nasce da consciência crítica. A estrela cumpre o ciclo que origina os elementos indispensáveis à formação dos planetas. Os estágios são partes de um processo: morte origina vida. A estrela é grandiosa. O homem - um nada no espaço ilimitado. A consciência crítica nos mostra o contrário. Somos nós que deduzimos as leis que condicionam a estrela. Por mais esmagadoras que sejam suas dimensões e potência, subimos no patamar da consciência crítica e a olhamos de cima. Dominamos a compreensão de sua finitude como a nossa própria finitude, e nos angustiamos e lutamos e paramos e recomeçamos enquanto o caminho da estrela é invariavelmente reto.
Nesse ponto, proponho um breve exercício de imaginação: olhar o mundo da janela de casa como se o ser humano jamais houvesse existido. O que vemos? A ação do homem inexiste. Nada de história, religião, ciência e arte, sobretudo, nada de objetivos. O primeiro olhar humano que se abriu para o mundo e o considerou como um objeto inteligível, seu potencial único de distinguir transparências na opacidade e fazer da treva fonte de conhecimento, inexiste. De um golpe, o impossível ganha corpo, e o mundo materialmente compreendido segue impassível enquanto o mundo do homem é nada. Então para quê o homem? Se uma voz poética emotiva e clara se dirige ao mundo e recebe como resposta nada mais que um trovão, talvez, numa noite de tempestade, faz com que seja, a nosso ver, uma questão de honestidade moral admitir que somos inteiramente dispensáveis; excluído o ser humano, o mundo estaria exatamente no mesmo lugar exercendo seu regime de colapsos, explosões e acaso.
Concluindo nosso exercício de imaginação, se tudo desmorona, é a consciência crítica que fica para nos dizer que o ser humano não é, nunca foi, uma meta em um mundo alheio a conceitos, objetivos, moral e ética. Por mais que o ser humano se apodere, munido da conquista do conhecimento, de um mundo que não o leva, nem por um segundo sequer, em consideração; por mais que dele se aproprie e o modele como o oleiro faz com uma porção de argila, ainda assim este ser, mais próximo dos animais do que gostaria, está sujeito às leis gerais com as quais sonha, no seu âmago mais profundo, um dia vergar, vencer e dominar. Enquanto existir, o ser humano estará lidando com a pergunta: por quê?
Retomemos a nossa estrela por um outro lado. A teoria é conhecida. A força da gravidade comprime a nebulosa de poeira e gás; a temperatura se eleva até o ponto de fusão nuclear ideal ao nascimento de uma estrela; e a pressão segue sobre ela em linha reta até o colapso inevitável; e deste a uma descomunal explosão. O novo estado da matéria está apto a produzir os elementos pesados indispensáveis à vida na Terra, por exemplo. Nesse sentido, parece-nos oportuna uma pergunta: a gravidade atingiu a sua meta? Pensamos que não, pois a força não se detém jamais. A colisão de um meteoro errático pode extinguir a vida na Terra – sem que o comportamento intempestivo seja precedido de uma tabuleta com os dizeres: Desculpem-nos o transtorno. Estamos em obras. A gravidade não contempla a sua criação. Ela se limita à função de condensar matéria e provocar um temporário equilíbrio; nada mais.
Em um mundo que se expressa através de constante movimento, talvez na arte possamos encontrar sua imagem, a nosso ver, mais fidedigna, como veremos mais adiante. Por ora, supomos que nossos rudimentos de astrofísica bastaram para o descarte de um objetivo à causa humanitária do mundo; a não ser que levemos em conta a permanente impermanência de tudo, essa preciosidade oriental, como um propósito. Sob a luz de um olhar superior – livre de ideias extraídas de um molde, o mundo descortina-se como objeto inapreensível, descentralizado e em permanente transformação. Para representá-lo, nossa adesão ao paradoxo é iminente.
Mantido o termo – Máquina, que nos seduz pela associação à engenho, interligação e movimento, adicionamos o qualificativo – Não Objetiva, por carregar nas suas junções a nossa estimada contradição e assim deslocar o mundo da vulgaridade meramente utilitária. Aceitemos o absurdo: o mundo dimensionado em bilhões de anos luz, pode ser traduzido pela visão parcial do sujeito; a ideia de intersubjetividade nos permite avaliar que na sua totalidade – e tão somente na sua totalidade, uma tal vastidão só possa ser descrita pela Arte.
Propomos então a obra do escultor suíço Jean Tinguely: Homenagem a Nova York, obra de arte que se autoconstrói e se autodestrói, de 1960, como uma representação compatível à nossa metáfora – Máquina Não Objetiva do Mundo. O ensaísta italiano Giulio Carlo Argan impõe à esta obra um corte nada complacente; Tinguely “reconstrói a partir de refugos máquinas fantasmagóricas e amiúde grotescas, às quais confere um movimento inútil, vagamente ameaçador 1; a crítica, ao contrário do que possa parecer, nos abre a perspectiva do centro da criação de Tinguely: o mundo não é harmônico, ele é ruidoso, instável e eventualmente destrutivo; fazê-lo habitável seria a nossa tarefa. Mas esta e nenhum de nós podem ser os únicos.
1. ARGAN, Giulio Carlo - São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
Minicurrículo
Ricardo Carranza é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2000, diretor do escritório de arquitetura e editora G&C Arquitectônica Ltda, editor da revista 5% Arquitetura + Arte e escritor. Publicações: Antologias de Concursos Nacionais – SCORTECCI, SESC DF; revista de literatura – CULT; sites de Poesia e Literatura – Zunái, Stéphanos, Germina, Cult - Oficina Literária, Mallarmargens, O arquivo de Renato Suttana, Triplov. LIVROS: Poesia – publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do autor, SP, 2011; Dramas, Editora G&C Arquitectônica Ltda., SP, 2012. Inéditos – Pastiche, 2017/2018; poesia... 2019. Contos – inéditos: A comédia dos erros, 2011/2018 – pré-selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2018; Anacronismos, 2015/2018; 7 Peças Cáusticas, 2018. Romance inédito: Craquelê, 2018/2019. Cadernos de Insônia (58): desde 2009. ARTIGOS publicados na revista 5% Arquitetura+Arte desde 2005.
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