INTERURBANO

Categoria: Poesia

RICARDO CARRANZA

ESCREVER COMO

Escrever como quem dorme:

fechar os olhos

para reabrí-los,

e cobrir o rosto

com as mãos,

apertar as pálpebras

e tentar

re-acostumar-se

à luz,

aos poucos.

 

Escrever como quem sente

uma ferroada

do inseto cotidiano:

olhar o vergão,

esfregar álcool,

por exemplo,

traduzir o choque,

digerir a dose

de veneno,

e ficar pronto

pra outra.

 

Escrever como quem soca

a boca do estômago

do animal que rosna

como quem rasga

uma fruta

com os dentes,

como quem corta

um bife

e espera frigir,

estalar,

tostar,

escorrer um caldo avermelhado,

para estraçalhar

com dentes

e mandíbulas vorazes.

 

Escrever como quem fode

com a mulher da vida,

que como um inseto

me ferra o pau,

e o atiça,

esfrega,

rasga,

devora,

até escorrer um caldo

com uma náusea

de pegar fogo

na boca do estômago

deste animal

que rosna:

farto,

fausto,

fútil.

 

Escrever como

no corpo- a- corpo?

Rolo em meio à poeira

que vem da terra.

Lambo as feridas.

Fecho os olhos

digerindo meu quinhão.

 

 

 

AGENDA

Um dia

eu estava naquela sala de espera,

sem saber muito bem porquê,

nem pra onde.

Apenas,

que era minha tarefa

estar ali.

Olhava aquele espaço tímido,

meio sem jeito.

O vaso

com plantas desidratadas.

A obra de arte,

de segunda-mão,

pendurada na parede.

Algumas  revistas

vencidas,

jogadas sobre a mesa.

(A vida de mão-em-mão

depois largada num canto.)

Duas ou três pessoas,

sentadas à minha frente,

pareciam

esfinges em letargia.

Tudo bem normal.

A brisa morna da tarde

arejava

o ânimo do dia-a-dia.

Pensei, mais uma vez,

na idéia surrada do rio,

sempre recorrente,

e que a poesia,

se não serve pra nada,

ainda assim é capaz

de jogar uma luz

no carpete acinzentado

de uma sala de espera.

Quando ganhei a rua

achei a luz do sol

poesia pura,

e os carros,

como mágica,

pararam de rosnar

um breve instante.

 

A CENA URBANA

Estou só

nesta  cidade

inserta

em uma sala

com muitas cadeiras espalhadas, 

mas apenas alguns pares

eventuais de pessoas

se abancam.

 

Cogito:

habitar

entre seres e coisas,

seguir

nesta cidade

como

estar em uma sala

a céu aberto,

dar de ombros,

perder-se pela manada?

 

Neste ambiente,

misto

de miséria e afetação,

ouço vozes

que se espraiam pelo ar,

afetos aéreos,

sem destino.

 

Vejo

o passeio doméstico

de uma tarde de domingo,

com vozes de crianças

e balões coloridos,

e é como

cada qual

na periferia

de si mesmo.

 

Minha consciência

se expande

à sala toda.

Será este

o meu universo

individual?

Mas o que existe

de íntimo

neste livro urbano

que registra

em ato público

a consciência

do que somos?

 

Hábitos e habitares.

O que eu sou

é o resultado

do que nós somos:

dívida pública,

registro em cartório,

selo,

carimbo,

assinatura barroca.

 

ANIMAIS

Saio da toca e vejo os animais

no vai-e-vem das ruas,

com seu sentido de urgência,

sua postura

                   peito estufado,

                   pernas abertas,

rabo em riste,

a baba escorrendo viscosa,

à espreita.

 

Animais no alto de edifícios

observam a próxima presa.

Noctívagos,

saem das frestas,

dos vãos,

dos buracos no asfalto,

atentos ao que pode ser seu

sem muito esforço,

sem projeto.

É dar o bote

e cair fora,

por causa da prole,

do ninho,

do freezer.

 

Animais complexos,

soberbos,

aguilhoados

na luta pela sobrevivência.

Primeiro o alimento,

a toca,

o naco.

Depois,

o orgulho,

a sofisticação.

Antes de tudo,

a presa,

a garantia da força,

a toca,

a despensa.

A luta feroz

com luvas de pelica,

por sombra e água fresca.

Em seguida,

a educação,

a diplomacia,

a ética.

 

- E você, do outro lado da rua,

dentro e fora disto tudo!

Seu rugido chega aos meus ouvidos,

às minhas orelhas peludas.

 

- Somos razoáveis porque compreendemos

quando termina

em nós

a caça

e começa o caçador?

 

Ferozes e fugazes animais urbanos.

Nada de carne crua!

Filé ao ponto,

música clássica.

Como somos sábios

em combinar

sobrevivência com sofisticação!

 

E do outro lado da rua vem o seu lamento:

 

- Como dar um sentido a isto tudo?

Como vencer o animal,

o bicho com ares de realeza,

os dentes afiados,

o bote súbito e surdo?

Como fazer uma ponte

e cruzar o asfalto

minado de raiva e armadilhas?

 

Animais discretos,

familiares,

insidiosos,

desfilam suas jubas,

garras,

cascos,

plumas,

presas.

Animais cheirando animais,

copulando,

aliciando,

cobiçando.

Animais

cercados de ouro

e pedras preciosas.

Animais

carregando uma pasta

com um milhão de dólares.

Animais

ostentando

um ar criminoso.

Animais

maquiados,

tatuados,

sócios de um clube.

Animais organizados,

administrativos,

hierárquicos.

Animais

dogmáticos,

discursam na prática,

e praticam no discurso.

 

- E você me acena do outro lado da rua.

 

 - Estamos no mesmo barco,

e não vai ser com meia dúzia de palavras,

que as coisas vão mudar.

Muito menos com um montão de imagens.

 

- Mas, é preciso distinguir:

a realidade não seria a mesma

 sem as palavras

e as tais imagens!

 

- Como seria o mundo

sem o toque de Thelonious Monk,

o sopro de João Gilberto,

o circo feliniano,

as garatujas de Cy twonbly,

a prosa de João Guimaraens Rosa,

sem essa coisa fútil chamada arte?

 

- Primeiro cuidar do estômago,

depois discutir a fome,

você diz, e eu respondo:

 

                   A arte não é um tipo de estômago

e o público uma espécie de fome?

O estômago do artista não é

um tipo de prato

e o público uma espécie de maitre?

 

- Por que balançar a cabeça,

aí do outro lado?

Podemos sentar e conversar.

 

Mas, você alega

falta de tempo,

e eu acho que pode ficar

para uma próxima vez,

já que não tenho

o alento necessário

para levar isto adiante.

E você sugere

que está bem assim,

já que o mundo

não foi feito em um dia.

E você segue

seu trote animal,

os cascos estalando no asfalto.

Eu, de minha parte,

espanto insetos

com o rabo.

 

E no asfalto urbano

vejo os animais,

no seu cortejo

de máquinas,

retórica

e tripa.

 

 

 

 

O PALCO URBANO

 

“All the world´s a stage

and all the men and women

merely players”.

William Shakespeare

 

Estou só na cidade

como quem

está só em um palco,

ao mesmo tempo

é impossível

estar só

na cidade,

porque

este palco

é o meu lugar,

portanto,

é o mundo inteiro,

e não é possível

estar só

nesta arena

que abriga tudo,

por estar

a céu aberto,

e o palco é praça,

e o preço é tudo,

mas,

não há como saber

 

onde começa a platéia

e termina o picadeiro,

nem como segue

o coro

feroz e tumultuado,

capaz

de louvar

e enternecer,

nem quando

vamos

sair de cena,

muito menos

se o desfecho

será favorável

(mas, o que vem a ser

favorável

em nosso estranho fim?).

Só me resta

o paradoxo

de estar só,

depois,

neste matadouro,

fascinado

pelo inexorável

fluxo

do nosso drama

urbano.

 

Desde este palco,

carregado de coisas

que mudam

o tempo todo,

vejo

a rua

faiscando de sol,

depois,

a lâmina de asfalto

é um espelho d’ água

refletindo

os faróis dos carros,

os semáforos,

o foco das lâmpadas

dos postes

de iluminação,

e a rua,

agora,

é um espelho de luzes,

uma pintura nas poças

arredondadas do asfalto.

Depois,

a mesma rua,

recebe uma feira

de frutas,

verduras,

legumes,

temperos,

pimentas,

peixes,

aves,

ovos,

vísceras

e vozes

matizadas

de gente

com sacolas,

credos

e olhares ansiosos.

Depois,

e ao mesmo tempo,

a rua

como um livro

de cimento,

piche,

grama e terra.

O corpo da rua

com suas marcas

de pneus,

passos,

galhos,

pó,

restos de comida,

folhas do poema inacabado

embrulham

um naco

de fígado de boi.

Depois,

tudo pode ser varrido,

e lavado.

Os sinais

darão lugar a outros,

e mais outros,

escrita reescrita

no chão e muro,

e por ser

tão densa

enruga

e depois descasca.

Postes e tapumes,

depois

de muitas camadas,

desfolham e revelam

seus cortes

nas muitas peles

sobrepostas.

Depois,

é arrancar e raspar,

recomeçar o processo.

Depois,

o desfile

de fachadas

de cinemas e teatros,

filas a céu aberto,

carros,

lanchonetes,

padarias,

farmácias,

livrarias,

serviços de utilidade pública,

praça-dormitório,

gente morando

em casas de papelão,

em galerias de esgoto,

nos buracos

sob os viadutos,

e uma criança

de cinco anos

sentada no chão

da cidade,

segura um bebê

nos braços,

e o embala distraída.

Olhamos,

protegidos,

sob o escudo do hábito.

Como tudo pode ser

fugaz e corriqueiro.

Depois,

a cidade moderna,

cenário de anúncios

de outdoor,

drugstore,

private bank,

city bank,

king’s burger,

fast food,

chinese food,

flying sushi,

pizza,

drive thru,

american express car,

relax for men,

50% off.

Depois,

em um lugar qualquer,

uma esquina qualquer,

percebo meu cansaço comovido

diante

de tantos carros,

dos mais diferentes

tipos,

cores

e procedências.

Meus olhos refletem

o movimento

de ônibus,

caminhões,

motocicletas,

bicicletas,

buzinas,

silhuetas de carroças

em madeira bruta,

matéria bruta,

tração humana

recortada

sobre o design

de carros

com vidros pretos

que deslizam,

velozes,

ao longo das avenidas.

Depois,

meu cérebro intoxicado

de tantos faróis,

semáforos,

painéis eletrônicos,

anúncios de néon,

bonecos de propaganda

sob focos de luz,

postes de iluminação

a mais de vinte metros de altura,

apartamentos acesos,

apagados, acesos,

janelas emolduram

silhuetas solitárias

a 2, 10, 40 andares

acima do chão,

e as longas avenidas

discorrem

sobre seu próprio leito,

e as calçadas

as margeiam,

descontínuas,

rasgadas,

multifacetadas,

e a geometria

das esquinas

com suas curvas,

postes,

sarjetas,

escadas,

bueiros e buracos,

e tudo

me arrebata

com tal êxito,

que não posso mais sentir.

Pobre ator

sem alma.

Depois,

os semáforos

reúnem

sua galeria de figurantes:

velhos,

velhas,

crianças,

adolescentes,

adultos dementes,

cegos,

ex-drogados,

representantes

de instituições filantrópicas,

malabaristas,

cuspidores de fogo,

juntos bafejam

sua mendicância

sobre os vidros

dos carros,

e tudo se dispersa

no vai-e-vem

de outras pessoas

que atravessam

com toda a pressa

do mundo:

nada mais razoável,

não é mesmo?

Depois,

a cidade como um

mercado a céu aberto,

onde se joga

a roda urbana

em movimento

com a venda

de doces e pipocas

nos pontos de ônibus,

cocadas

escuras e claras

nos pontos de táxi,

sanduíches,

bolos e café,

nas entradas

das estações de metrô.

Uma corrente humana

roda a roda urbana

nas lanchonetes,

pastelarias,

padarias,

e máquinas

de café expresso,

e frangos na brasa

girando,

tostados,

nos espetos,

e bancas de jornal

com suas cotidianas

vitrines

de crimes,

modelos nuas,

histórias em quadrinhos,

escândalos de corrupção

encenados

pela maldita classe política,

e os cavaletes

com pão italiano

nas esquinas,

e os mercados

cheirando a coentro,

frutas,

queijo,

pastel frito,

e gente

pechinchando,

guardando moedas,

catando sobras,

contando com a sorte.

Depois,

a cidade riscada

por linhas de ônibus,

trens,

lotações,

metrôs,

cruzamentos,

viadutos,

pontes

sobre rios

que apodrecem

como uma sinuosa

carcaça de bicho

estável no seu estado

de putrefação.

Coisas passando

noite após dia

após noite

após dia.

Depois,

as cidades sobrepostas,

sedimentadas,

calcificando camadas,

condensando lâminas,

engastando lascas

sob braços multicoloridos,

costas carregadas,

pés calçados

com botas operárias,

mãos calejadas,

a fronte suada,

os olhos divisando

um horizonte

onde uma grande

árvore florida

lhes dará sombra e sonho,

um dia.

Depois,

vem outro

lado da cidade,

entre muitos outros

lados da cidade,

em um passo

largo e rápido,

sob olhos que brilham

diante das árvores

que passam,

os postes

que passam

com seus enxames de fios,

e as praças parcas,

símbolo e retrete,

platéia de mendigos

que conversam,

bebem,

transam,

dormem,

e os carros

que passam

ônibus

que passam

carros de polícia

que passam

táxis,

e lotações

que cruzam

em sentido contrário

a uma ambulância

que abre caminho

com sua sirene,

e carros que atravessam

chispando,

buzinando,

cantando pneus

no arranque dos semáforos,

tirando finas,

chocando-se na pressa,

entortando um poste,

esmagando a frente

na frente

de um outro carro

cujo motorista

estilhaça

a cabeça

no pára-brisa.

Logo,

grupos de pessoas

se concentram

pra ver quem é,

como foi,

e se horrorizam

com  uma eventual

poça de sangue.

Depois,

mais à frente,

jogos de casas

feitas de pedaços

de chapas metálicas,

retalhos de madeira e plástico,

e crianças brincando

em roda cantando

na base

de aglomerados de prédios

em cimento e aço,

por trás de muros,

e cercas eletrificadas,

e luzes que acendem 

à passagem de gente

que segue,

com pressa,

em busca de um ônibus

para um outro lado

da cidade,

todos pensando

em ter

depois

uma certa paz

sob um céu azul anil.

Depois,

as páginas

do palco urbano

vão sendo escritas

vorazmente.

Quase não se entende

a letra

porque a música

segue rápida demais.

Páginas e páginas

de marcas e coisas

passando,

e gente com as coisas

levando as marcas

da comédia e drama.

Um rodamoinho

                 com que sentido?

passando.

Depois,

a esperança

de vencer a pressa,

reduzir o espanto,

espantar o medo,

derrubar os muros,

saciar a fome,

ciciar o cio,

afrouxar o nó da gravata

e andar descalço

no jardim deste teatro,

e saciar

um pouco

a sede

de ser

alguma coisa

mais simples.

Depois,

como sempre,

repassar os passos

pelas ruas e avenidas,

e mares de anúncios,

e enxurradas de imagens

que falam

sobre a futilidade

de nós mesmos,

nós,

que não sabemos

quem somos,

nós,

atores casuais,

teoricamente decentes,

portadores de

cic,

rg,

vírus,

data de validade,

certidão de batismo,

habitantes

dessa torre de babel,

nosso palco,

platéia,

coro,

habitat,

nossa cidade

que nos acena

com alguma

promessa

essencial,

dinâmica,

cheia de azuis e riso,

que vai ser

conquistada

depois,

que vais nos

iluminar

depois,

que vai nos

salvar

depois,

que vais nos

libertar

depois,

para

continuarmos

para sempre

depois,

mesmo

sem

mais

porque

ou

por qual

depois.

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