José Carranza e o nacional-popular
Coleção: Lucas José
RICARDO CARRANZA
EDITE GALOTE CARRANZA
José Carranza 1914 – 1996
Foi o primeiro filho nascido no Brasil, na cidade de São Paulo, de uma família de imigrantes espanhóis da região de Andaluzia. Cursou não mais que o segundo ano do Grupo Escolar. E começou a trabalhar com nove anos de idade numa estrebaria como ajudante de ferreiro. Com doze anos foi admitido como operário nas Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Depois de três anos, recebeu um aumento que considerou aviltante. Foi até o Conde Matarazzo para manifestar sua indignação
O aristocrata o demitiu. Dia seguinte, estava empregado numa fábrica de pregos. No final do dia, levava horas para recuperar a audição. Seguiu como operário em diferentes funções, depois motorista de táxi, e novamente operário até se aposentar aos sessenta anos de idade. Então conseguiu dedicar-se exclusivamente à pintura.
Sua trajetória pode ser organizada em três períodos: político, vinculado ao Partido Comunista vertente João Amazonas; estético, no campo da pintura e artesanato, e religioso como membro da Igreja Messiânica Mundial.
Artista bissexto e autodidata, em meados da década de 1960, depois de muitas sessões noturnas, concluiu o Cristo na Manjedoura, e assim encontraria o tema central da sua Arte: a pobreza Franciscana.
José Carranza nunca se considerou um artista ingênuo ou primitivo. Admirava os clássicos. Através de cópias dos grandes mestres aprendeu a lidar com pincéis e tinta a óleo.
A partir da década de 1970, participa como expositor cadastrado na Feiras de Artes e Artesanato da Praça da República. Suas favelas coloridas conquistaram o interesse do público, em especial o europeu, com a aquisição de diversas obras durante mais de uma década. José Colasuonno, sócio fundador do Empório Artístico Michelangelo, foi um grande incentivador da arte de José Carranza adquirindo obras regularmente.
No ano de 1976, participa da Exposição Primavera-Verão, na Assembleia Legislativa de São Paulo, e é distinguido com a Grande Medalha de Prata, com uma obra da série favela, sem título.
No ano de 1980, no 44o. São Paulista de Artes Plásticas, em exposição realizada na Galeria Prestes Maia, recebe, mais uma vez, a Grande Medalha de Prata, com a obra Branquinha, da série favela.
Para José Carranza a imaginação como método não se limita à implantação ou ao tratamento pictórico de cada uma das habitações informais, pois considera a percepção do dia a dia de seus habitantes; além das relações espaciais e características de cada construção, Carranza pensa nos moradores e relações de vizinhança na sua simplicidade essencial; observamos a presença majoritária de mulheres e crianças, o transporte de latas d´água, roupas no varal, duas mulheres conversando na porta de casa, e o gesto da mulher que acena a uma outra não visível, mas subentendida, para citar os exemplos mais frequentes; com base nessa lógica, nos parece lícito deduzir que Carranza ousou nomear como Branquinha a uma de suas obras, a cabra não visível estaria trotando entre as casas provavelmente em busca de alimento.
Deixará a pintura na década de 1990, depois que a artrite o impediu de segurar o pincel.
José Carranza, c.1934. Foto: Acervo de familia
José Carranza e o nacional-popular
A obra de José Carranza representa bem o conceito nacional-popular na Arte.
Do aprendizado da pintura à óleo mediante cópias de diversos motivos: a natureza-morta, a paisagem, e o retrato, que encontrava em livros, calendários ou fotografias, à afirmação de sua identidade artística, foram cerca de dez anos de dedicação após o horário formal de trabalho. Aposentado, pôde se dedicar integralmente à pintura quando se concentrou no tema da favela.
José Carranza adota, como principal tema de sua obra, os espaços informais que surgem nas periferias de São Paulo, então conduzidos pelo grande fluxo migratório do campo para as cidades grandes, na década de 1970. A temática de sua representação pictórica, revela o olhar crítico do artística, forjado na vivência da pobreza e da exploração do trabalho, e na crítica ao capitalismo junto aos irmãos filiados ao PC do B.
O artista observa os agrupamentos de barracos de madeira, o chão de terra batida, o mato do entorno, mulheres carregando latas d’agua, lavando e estendo as roupas nos varais, as crianças descalças no chão de terra batida, as galinhas soltas e os poucos homens. Ao mesmo tempo que olha a dura realidade dos espaços informais e toda sua precariedade, sua pintura trata o tema com leveza e dignidade.
O resultado são obras repletas de sensibilidade e poesia. José Carranza representa as madeiras dos barracos pintadas e multicoloridas, da mesma forma as roupas, as crianças no chão de terra batida tratando do cabritinho, a socialização das mulheres conversando através das janelas, o homem provedor chegando do trabalho; figuras humanas majoritariamente pretas e sem rosto definido.
A obra de José Carranza é uma representante fidedigna do conceito nacional-popular gramsciano, pois retrata o que há de mais autêntico na cultura popular. Primeiramente, pelo esforço do pintor em superar sua condição de trabalho proletário e ascender ao trabalho artístico, pois conforme Antônio Gramsci: “todos homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual, qualquer que seja, é um filósofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo”. Em segundo lugar, porque sua arte é fruto da cultura popular, vinda do povo, e sem a mediação acadêmica, ou seja, sem a mediação dos “intelectuais orgânicos”, nas palavras de Gramsci: “os intelectuais estão distantes do povo, isto é, da “nação”, es estão por sua vez ligados a uma tradição de casta que nunca foi rompida por um forte movimento político popular ou nacional a partir de baixo” 1.
Dadas essas considerações, entendemos que a obra de José Carranza não segue cânones acadêmicos nem os preceitos da arte moderna, entretanto, representa a nação, a cultura e a arte brasileiras de forma autêntica.
Figura 1 - Coleção Ricardo Carranza. Natividade. Aquarela sobre papel, c.1960. Foto: Ricardo Carranza
Figura 2 - Paisagem. Cópia. Óleo sobre tela. c.1960. Foto: Ricardo Carranza
Figura 3 - Coleção Marco Carranza. Paisagem. Óleo sobre tela. c.1960. Foto: Marco Carranza
Figura 4 - Coleção Marco Carranza. Paisagem. Óleo sobre tela, c. 1970: Foto: Marco Carranza
Figura 5 - Natureza morta. Óleo sobre tela, c.1970. Foto: Ricardo Carranza
Figura 6 - José Carranza. Credenciado na feira de artes na Praça da República, c.1970. Foto: Acervo de família
Figura 7 - Série Favela. Óleo sobre tela, 1973. Foto: Ricardo Carranza
Figura 8 - Coleção Ricardo Carranza. Série Favela. Óleo sobre tela, 1975. Foto: Ricardo Carranza
Figura 9- Coleção Lucas José. Série Favela, Óleo sobre tela, 1976, 49x77cm, Obra premiada com a Grande Medalha de Prata, na exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Lucas José
Figura 10 - Certificado da premiação na exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Lucas José
Figura 11 - Cerimônia de abertura da exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico – DBAH Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Figura 12 - José Carranza recebendo a medalha na cerimônia da exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico – DBAH Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Figura 13 - José Carranza, recebendo os cumprimentos na cerimônia da exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico – DBAH Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Figura 14 - José Carranza, recebendo o certificado da premiação, na exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico – DBAH Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Figura 15 - José Carranza ao lado de suas obras, na exposição Primavera-Verão 76, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Foto: Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico – DBAH Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo
Figura 16 - Série Favela. Óleo sobre eucatex, 1977. Foto: Ricardo Carranza
Figura 17 - Coleção Ricardo Carranza. Série Favela. Óleo sobre tela, detalhe, c.1978. Foto: Ricardo Carranza
Figura 18 - Coleção Ricardo Carranza. Série Favela, Óleo sobre tela, c.1979. Foto Ricardo Carranza
Figura 19 - Série Favela. Óleo sobre tela, 1979. Foto: Ricardo Carranza
Figura 20 - Série Favela. Óleo sobre tela, 1979. Foto: Ricardo Carranza
Figura 21 - Coleção Marco Carranza. Branquinha. Série Favela. Óleo sobre tela, 1980. Obra premiada no 44o. Salão Paulista de Belas Artes Galeria Prestes Maia. Foto: Marco Carranza
Figura 22 - Catálogo da Exposição, na qual José Carranza foi premiado pela obra "Branquinha", que recebeu Grande Medalha de Prata.
Figura 23 - Série Favela. Óleo sobre tela, 1982. Foto: Ricardo Carranza
Figura 24 - Coleção Ricardo Carranza. Série Favela. Óleo sobre tela, 1982, 25 x 40cm. Foto: Edite Galote Carranza
Figura 25 - Coleção Flávio Carrança. Marina. Óleo sobre tela, 1979, 28.5 x 38.5cm. Foto: Flávio Carrança
Figura 26 - Casa de taipa de mão. Óleo sobre tela, 1979. Foto: Ricardo Carranza
Figura 27 - Coleção Ricardo Carranza. O sonho. Óleo sobre tela, 1981, 26 x 40cm.Foto: Edite Galote Carranza
Figura 28 - Coleção Ricardo Carranza. Série Natureza morta. Óleo sobre tela, 1983. Foto: Ricardo Carranza
Figura 29 - Coleção Ricardo Carranza. Paisagem. Óleo sobre acrílico, 1983, 38 x 68 cm. Foto: Edite Galote Carranza
Figura 30 - Coleção Ricardo Carranza. Desenho a lápis sobre tela, 19 x 28 cm, c. 1980. Foto: Edite Galote Carranza
Nota Explicativa:
Por terem vindo de diferentes fontes, em momentos históricos distintos, as fotografias do presente artigo não possuem um equilíbrio cromático ideal; e as informações sobre dimensões e datas são incompletas por dois motivos: primeiro, pelo fato das obras estarem inacessíveis, pois os colecionadores, em sua maioria, eram europeus; segundo, porque o Artista não tinha o hábito de catalogar seus trabalhos, além do que passou a inserir a data depois de anos de produção.
Contamos com a compreensão de nossos estimados leitores.
Referência:
1 GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 6.
Agradecimentos:
Lucas José, pela fotografia da obra premiada e respectivo certificado.
Flávio Carrança, pela fotografia.
Marco Carranza, pelas fotografias.
Divisão de Biblioteca e Acervo Histórico - DBAH
Departamento de Comunicação, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo,
pelas imagens da exposição que foram cedidas. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. | (11) 3886-6308 | www.al.sp.gov.br
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Como citar:
CARRANZA, Ricardo; CARRANZA, Edite Galote. José Carranza e o nacional-popular. 5% Arquitetura + Arte, São Paulo, v.01, n.27, e223, jan. jun. 2025. Disponível em:
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